PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
1. Casamento à prova de amantes
Cristina Chen – 2015
– Será que você não entende? Eu não estou
mais a fim de você. EU, NÃO ESTOU MAIS A
FIM DE VOCÊ!
– Mas como?
– Como o quê?!
– Como pode? Até ontem você dizia que eu era o
amor da sua vida!
– Até ontem, não. O nosso casamento acabou
faz tempo e só você não percebeu.
– Ah, para com isso, Beto! Isso não é verdade!
– Claro que é! Enfim, não adianta a gente ficar
aqui discutindo. Já tentei te explicar mil vezes a
mesma coisa. Se você é cega ou surda não sei, mas eu não vou ficar perdendo o meu
tempo repetindo: EU NÃO QUERO MAIS ESTAR COM VOCÊ!
– E eu não vou ficar aqui ouvindo você falar uma besteira dessas. Você é que tá cego e
surdo. Aliás, foi assim o casamento inteiro. Eu me casei com um bananão e você tá certo,
sou mesmo cega por não ter visto isso antes!
Bruscamente, Carol se levantou e saiu do quarto. Tinha vontade de gritar, mas não podia,
já que Babi, a filha do casal, dormia no quarto ao lado. Nos últimos meses, não foram
poucas as vezes que a criança presenciou brigas horrendas entre seus pais, sempre
agarrada ao seu cobertorzinho lilás implorando para que fizessem as pazes. De nada
adiantava. Beto e Carol, ora se estranhavam, ora se ignoravam e sua filha era a que mais
sofria: tinha terrores noturnos constantes, acordando a casa toda com seu choro
estridente. Nos dias em que os pais levantavam bandeira branca, ela fazia festa,
distribuindo beijos e abraços calorosos; e podia se ver no fundo de seus olhinhos,
lágrimas de esperança.
– Para onde você vai?
– Ué, você não disse que não me ama mais, que não quer mais estar comigo? Então por
que você quer saber?
– Para saber.
– Para saber não é resposta.
– Você não vai sair a essa hora. Está tarde.
– Ah, muito bonito. O senhor não quer mais ficar comigo, mas também não me libera.
Tchau, tô indo.
– Se você for, não precisa voltar!
– Indo ou não indo, segundo você, não temos mais nada um com o outro, não é mesmo?
Então, tchau!
Carol bateu a porta da frente, pegou o carro e seguiu sem rumo. Suas mãos tremiam.
Lágrimas rolavam em seu rosto marcado pelo sofrimento dos últimos tempos. Sentia um
misto de raiva e tristeza. Decepção e indignação. Não conseguia acreditar que o amor da
2. sua vida – como diziam um ao outro em tempos remotos – estava lhe deixando. Algo
dentro dela dizia que seu casamento não havia chegado ao fim. Estava absorta em seus
pensamentos quando o celular tocou. Parou no acostamento e leu: “Mensagem de JP: Oi,
dá pra falar?”. Seu coração acelerou. Não sabia o que fazer. Naquele momento, carente
que estava, o que mais queria era responder: “Não só dá pra falar, mas também abraçar,
beijar, e tudo o mais que você quiser fazer comigo...”. Por outro lado, sentia uma culpa
imensa: ela não era religiosa, mas não deixava de acreditar que os poderes divinos
poderiam puni-la por estar flertando. Naquela noite, revoltada, não quis saber.
Respondeu:
– Oiiiiii... Dá sim! Quer me encontrar?
– Encontrar?!!! Você consegue?!!! Você não tá em casa?!
– Não, depois te explico. Vou te esperar no local de sempre...
– Ok!!!
Lágrimas enxugadas, rosto maquiado, cabelos puxados para trás em rabo de cavalo:
Carol estava pronta para arrasar. Dirigiu até o local. Entrou, deixou sua bolsa na cadeira e
foi direto ao banheiro. Checou o batom, puxou o decote da blusinha para baixo e passou
um pouco do perfume que carregava na bolsa, “Sexy”. Nos últimos tempos, sexy era o
que menos se sentia ao lado de seu marido, enfim, não era hora para pensar naquilo.
Ajeitou-se e ficou à espera. JP chegou logo em seguida e, um pouco sem jeito, buscou
um cantinho para se acomodar, nem tão perto nem tão distante dela – como ela pedia,
sempre que se encontravam. A distância entre os dois era de mais ou menos meio metro,
o que era razoavelmente seguro, porém, à meia luz, as cortinas vermelho ardente e o
cheiro de sexo que pairava no ar, tornavam os dois bastante vulneráveis.
Um fitava o outro sem dizer nada. JP logo percebeu que havia algo de errado: Carol
encarava-o com um olhar pesado, triste. Sem saber o que fazer, ele teve o impulso de
puxá-la para si. Ela se desmanchou em seus braços. Os dois sentiam o calor de seus
corpos encostados um no outro. Delicadamente, ele puxou os cabelos perfumados dela
para trás, deixando seu pescoço exposto. A respiração ofegante de ambos os sufocava
de tanto desejo. A mão máscula de JP passou a acariciar o pescoço nu dela. Ficaram
assim um bom tempo e, aos poucos, a tentação foi cedendo lugar a um carinho quase
maternal. Já recompostos, cada um voltou ao seu lugar. Decidiram pedir algo para comer.
Sentaram-se um ao lado do outro e, ao pegarem no cardápio, a onda de calor voltou: sem
querer, suas mãos se tocavam de leve e seus perfumes se misturavam no ar. Ela se
sentia mareada, ele cheio de desejo. Ela procurava se concentrar nas palavras, ele se
perdia em suas próprias sensações corporais. O momento de tensão foi quebrado por ela
que sugeriu um petisco; ele aceitou. E assim foi a noite toda até quase o amanhecer:
momentos de ardor intercalados com um aparente desprendimento por parte dela.
Quando sentiu que já estava pronta para voltar para casa, Carol sugeriu que fossem
embora. No caminho de volta, JP foi seguindo o carro dela e quando viu que ela entrou
em casa com segurança, foi embora. Ela entrou silenciosamente no quarto, enquanto seu
marido deitado na cama fingia roncar. Na verdade, Beto ficara acordado a noite toda
andando pelos cômodos da casa impacientemente, imaginando onde sua esposa estaria
e quando percebeu que a porta da frente se abria, correu para a cama e se enfiou
debaixo das cobertas; sentia o coração quase pulando pela boca, mas felizmente ela não
notou.
No dia seguinte, Babi acordou cedo e foi direto ao quarto dos pais. Como fazia de vez em
quando, beijou o pai e a mãe, e pediu para que os dois dessem selinho um no outro.
Missão cumprida, levantou-se e foi para a sala brincar. Enquanto isso, sua mãe foi
preparar o café da manhã; seu pai ainda quis ficar um tempo na cama lendo o jornal,
3. fingindo estar interessado nas manchetes, mas na verdade, de segundo em segundo,
desviava o olhar para o celular da mulher que estava no criado mudo. Pensou em pegá-lo
para ver se encontrava alguma pista sobre a noite anterior; sua consciência o deteve.
Tentou se concentrar no jornal, mas nem mesmo as notícias o estavam ajudando:
Homem é morto pelo amante da
esposa na Zona Norte da cidade.
Com força, jogou o jornal no chão e finalmente pegou o celular da esposa, no mesmo
tempo em que ela gritou da cozinha, “O café da manhã está pronto!” Enrubescido, soltou
o aparelho e saiu apressado da cama como um criminoso pego em flagrante. Correu para
a cozinha e deu um abraço nela que não entendeu nada, mas mesmo assim retribuiu o
carinho.
Sentaram-se todos na mesa da cozinha e enquanto comiam, conversavam trivialidades.
Babi procurava fazer gracinhas para entreter seus pais que se derretiam com sua
presença. Após a refeição, Beto logo saiu para o trabalho. Carol ainda se trocou e
arrumou a filha antes de deixá-la na escola. Chegando lá, mãe e filha se abraçaram e se
despediram. Carol entrou no carro e checou a agenda do dia: muitos compromissos a
esperavam.
Carol era “Designer de pessoas”, como fora apelidada por um cliente. Ela trabalhava a
imagem pessoal e profissional das pessoas que a contratavam. Era apaixonada pelo que
fazia e por mais trabalho que desse, a recompensa era grande: muitos foram os que
conseguiram alavancar a carreira, encontrar parceiros e até mudar o jeito de ser com sua
ajuda. O melhor de tudo era que podia ser dona de seu tempo e era muito bem paga. A
ideia de trabalhar com isso surgiu espontaneamente: conhecida como “A inovadora”, “A
moderna”, “A mais-mais” pelos amigos, ela sempre os ajudava a mudar de visual. Ela
fazia isso com prazer, afinal, estava em casa com uma recém-nascida e sem trabalhar.
Em uma dessas vezes, seu amigo estava acompanhado de uma amiga que se interessou
por contratar seus serviços: Carol se recusou, dizendo que podia fazer aquilo sem custo
algum, mesmo assim, a mulher insistiu em pagá-la. Desse serviço, foram surgindo outros
e mais outros e quando foi ver, ela já havia virado referência para muita gente. Seu
esposo não via isso com bons olhos: no fundo, ao mesmo tempo em que não se
importava dela trabalhar, sentia ciúmes – havia se acostumado com a ideia de tê-la em
casa no tempo em que ficou grávida.
Carol atravessou a cidade para encontrar sua mais nova cliente: LilyLayla era uma
celebridade da Moda que, apesar de super entendida do assunto, era tão arrogante que a
mídia já estava começando a se desinteressar por ela. Tomou conhecimento do trabalho
de Carol por intermédio de um conhecido em comum. Marcaram de se encontrar em sua
mansão no bairro mais nobre da cidade. Carol foi recebida pelo mordomo, um senhor
muito educado e fino, que anunciou sua chegada à madame por um interfone. Apesar da
escadaria com corrimão feito de ouro maciço, lustres estonteantes e mobília mais ainda,
ela não parecia se sentir intimidada (no fundo, bem lá no fundo, estremecia um
pouquinho, contudo, sua postura assertiva não a entregava). Cumprimentaram-se e
ficaram horas conversando. Carol saiu zonza e cansada da casa da mulher, e
compreendeu por que a mídia não queria mais saber dela: se nem ela queria saber,
imagine os outros que nem pagos estavam sendo, para aguentá-la!
Carol correu para o compromisso seguinte, e mais outro, e outro, até que cumpridas todas
as tarefas profissionais daquele dia, foi buscar sua filha na escola. Exausta, chegou em
casa não querendo saber de mais nada, mas ainda precisava preparar a menina para
dormir. Em geral, Babi era muito boazinha, por outro lado, como toda criança, tinha suas
sapequices e teimosias: por exemplo, odiava escovar os dentes e mais ainda tomar
4. banho. Era uma luta diária que deixava sua mãe esgotada. Por sorte, naquele dia, a
menina cooperou e dormiu logo. Animada pelo tempo livre que lhe sobrou, Carol resolveu
tomar um banho na hidro: encheu a banheira, pôs os sais relaxantes e mergulhou seu
corpo na água quente e cheirosa. Com o passar do tempo, todo o cansaço do dia foi
dando lugar ao relaxamento. Sentiu alguém abrir a porta: era Beto, que não sabia que sua
esposa estava ali. Ao se deparar com a mulher exposta naquela água convidativa, ele
teve vontade de se juntar a ela. Os dois se olharam, ele hesitou, deu meia volta e saiu do
banheiro, enquanto ela ficou ali, desejando seu homem... a água se tornou fria e o doce
perfume dos sais evaporou.
Carol esvaziava a banheira quando o celular tocou: “Mensagem de JP: Só pra te mandar
um beijo de boa noite!”. Ela respondeu provocativamente: “Acabei de sair da hidro... Tô
toda molhada, preciso me secar e pôr a minha camisola. 1000 beijinhos...”. JP devolveu a
provocação: “Olha o que você faz comigo, como vou dormir assim?!”. Ela soltou uma
risada alta, guardou o celular no roupão e saiu do banheiro. Deu de cara com o marido
deitado na cama. Foi até um canto do quarto em que ele pudesse observá-la e, de costas,
tirou o roupão vagarosamente, como se estivesse fazendo um strip-tease. Rodopiou o
roupão no ar, jogou-o no chão, puxou os cabelos molhados para cima e começou a
passar a toalha no corpo nu parte por parte, dando umas reboladinhas de vez em quando.
Virou-se de perfil, deixando seus seios à mostra propositadamente. Virou-se novamente
de costas e curvou-se o máximo que pode para secar os pés, deixando toda sua parte
detrás exposta. Curiosa, ela se sentia tentada a olhar para trás para saber se Beto a
espiava, mas acreditando que ele poderia estar curtindo o show e qualquer movimento
fora do contexto poderia estragá-lo, resolveu continuar a exibição: de maneira sensual
passou o hidratante no corpo todo, deslizando-o sugestivamente pelas suas partes
íntimas e vestiu uma camisola curtíssima, sem calcinha. Quando achou que já era
suficiente, virou-se: Beto estava lendo revista, totalmente indiferente ao que sua esposa
fazia. Meio sem graça, deitou-se ao lado do marido e começou a lhe contar como fora o
seu dia. Como sempre, ele a ouvia desinteressado. Magoada, Carol desistiu de tentar
uma aproximação e pegou no sono.
– Mãe, mãe! Acooooorda, mamãe! Quero fazer cocô.
– Hã?
– Quero fazer cocô.
– Pede pro seu pai...
– Ele já saiu. Vai logo, quero fazer cocô.
– Você já é grande o suficiente pra fazer cocô sozinha, filha.
– Eu não quero fazer sozinha! Eu quero você! Carol, ainda sonolenta, levantou-se da
cama e levou Babi ao banheiro. Limpou-a e foi ver as horas: quase seis da manhã.
Procurou o marido pela casa e realmente ele não estava. Convidou a filha para voltar a
dormir mais um pouco, porém, a criança já estava totalmente desperta e ativa, querendo
brincar:
– Vamos brincar, mãe. Vem!
– Filha, tô com sono. Vamos dormir mais um pouco.
– NÃÃÃÃO! NÃO QUERO! Quero brincar na sala.
– Filha, eu preciso trabalhar daqui a pouco. Descansa um pouquinho.
– Eu não vou! E você também não vai!
5. Ignorando as demandas da menina, Carol voltou para a cama. A criança veio em
disparada, subiu na cama e começou a pular e cantar em voz alta. Não obtendo atenção,
começou a puxar os cabelos da mãe que continuou imóvel, irritada pelo sono e o mau
comportamento da filha. Carol se segurava para não estourar, até o momento em que a
menina começou a dar chutes em seu abdômen:
– VOCÊ PARA JÁ! CHEGA! CHEGA! SE VOCÊ APRONTAR MAIS ALGUMA, EU BATO
EM VOCÊ. E VOU BATER COM TANTA FORÇA QUE VAI FICAR MARCAS PRA
SEMPRE!
Babi olhou para a mãe, arregalou seus olhinhos e pôs-se a chorar alto, o que aumentou
mais ainda a cólera da mãe:
– EU NÃO QUERO SABER DE CHORO. PARA JÁ! PARA, SENÃO EU TE TRANCO NO
BANHEIRO E TE DEIXO LÁ PRA SEMPRE!
De nada adiantou: agora a menina estava descontrolada. Carol, sentindo uma raiva
imensa e uma culpa maior ainda, deixou-a sozinha no aposento. Foi para a sala para
tentar se acalmar; sua filha veio logo em seguida:
– Desculpa, mãe...
– Não chega perto de mim!
– Desculpa, mãe.
– Eu já disse pra não chegar perto de mim.
– Mamãe, eu quero colo.
– Sai daqui.
– Por favor, mamãe. Sentindo que estava para estourar novamente com a insistência da
filha, Carol pegou-a no colo sem vontade. A criança abraçava e beijava a mãe que
continuava fria:
– Vamos tomar o café da manhã e nos preparar pra sair. Você tem escola hoje.
Obediente, a menina seguiu todos os passos. Acenou para a mãe assim que entrou na
escola, porém, ela já tinha ido embora. Carol não via a hora de voltar para casa para
dormir mais um pouco, mas era dia de faxina e a diarista virava a casa do avesso nesses
dias. Sendo assim, decidiu que o melhor que tinha a fazer era tomar um café bem forte
para mantê-la acordada pelo resto do dia. Foi ao seu cafezinho preferido, sentou-se no
seu cantinho, pediu um café e abriu a agenda. Não conseguia se concentrar: ainda podia
sentir os efeitos emocionais da briga com sua filha – a culpa que sentia era monstruosa.
Além disso, um pensamento lhe atormentava: por que seu esposo saíra tão cedo de
casa? Não era a primeira vez. Decidiu telefonar para ele. O celular tocou, ninguém
atendeu. Telefonou mais uma vez. Deu caixa postal. Desconfiada, pagou o café e saiu.
Precisava de ar puro. Andava em direção ao carro quando tocou o celular. Seu coração
bateu mais forte, finalmente poderia falar com ele. Desta vez, teria coragem para
interrogá-lo: “Onde você está?”; Por que você tem saído tão cedo?”; “Pra onde tem ido?”
– eram perguntas que a acompanhavam dia e noite. Infelizmente, era JP querendo saber
se ela queria encontrá-lo. Sabendo que não seria uma boa companhia, respondeu que
estava ocupada demais naquele dia.
Carol foi visitar alguns clientes e voltou para casa mais cedo. Nos dias de faxina, a
diarista buscava Babi na escola e cuidava dela até que adormecesse. Assim sendo, Carol
mal entrou na casa, fechou-se no quarto e se enfiou na cama: não queria ver ninguém.
Exausta de tanto ruminar a respeito de sua filha e seu marido, caiu num sono profundo e
nem mesmo notou quando ele voltou para casa e deitou-se ao seu lado.