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Vivian Caccuri
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OQUEFAÇOÉMÚSICAVivianCaccuri
Este livro mostra como artistas visuais tor-
naram tangível e manipulável a imagem dos
mitos da música. As narrativas construídas
pela indústria fonográfica motivaram boa
parte das obras aqui citadas e fazem parte
da trama crítica de diversos desses trabalhos,
demonstrando como tanto o ídolo quanto o
processo da gravação fonográfica podem ser
reapropriados em projetos que propõe uma
vida diferente daquela à qual foram primeira-
mente destinados.
o que faço
é música
Como artistas visuais
começaram a gravar
discos no Brasil
o que faço é música
Vivian Caccuri
o que faço
é música
Como artistas visuais
começaram a gravar
discos no Brasil
coleção através
O primeiro passo da coleção ATRAVÉS é divulgar e refletir
a produção acadêmica e torná-la disponível para o
leitor. Romper a barreira das estantes das universidades
abarrotadas de teses e dissertações, que possuem poucas
oportunidades de serem publicadas. Permitir que a
pesquisa acadêmica, através de uma narrativa ensaística,
clara e precisa, chegue ao leitor e não se torne, portanto,
uma produção quase que confinada ao esquecimento.
A coleção tem o compromisso com a interdisciplinaridade,
e de provocar reflexões e permitir diálogos entre
diferentes campos de saber tendo a cultura como meio
de discussão. Interessa-nos atravessar tempos e lugares,
disciplinas e meios, como forma de entender o presente.
A coleção ATRAVÉS também se constitui em um campo de
experimentações nos temas e estudos que serão abordados,
assim como permitirá a ampliação de novos autores para a
literatura crítica no país.
Felipe Scovino
©2013 Vivian Caccuri
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
Coordenação da coleção
Felipe Scovino
Coordenação editorial
Isadora Travassos
Produção editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Victoria Rabello
Ilustração
Chiara
2013
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro-rj cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076 | editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
c125d
Caccuri, Vivian
O que faço é música : como artistas visuais começaram a gravar discos
no Brasil / Vivian Caccuri. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2013.
(Coleção Através)
isbn 978-85-421-0146-1
1. Registros sonoros - Indústria - Brasil - História. 2. Música popular -
Brasil. 3. Música - Análise, apreciação. I. Título. II. Série.
13-02709 cdd: 781.17
cdu: 681.84(81)
Sumário
Introdução 9
Ironias e reverências:
artes visuais e o imaginário da música popular 17
Um breve histórico
da economia do disco no Brasil 27
Cildo Meireles 45
Afeição 45
Mebs/Caraxia 47
Índios e padres 52
Waltercio Caldas
O museu, a vitrola e o regime de silêncio 61
A menção do jazz 64
A estranha evidência do silêncio 67
Ruído transformador 73
Chelpa Ferro
A abertura democrática 79
Do estúdio à galeria 84
O aparato do rock 87
Gravando 90
O LP contemporâneo 95
Ausência 96
Bibliografia 99
Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos morais e autorais neste livro. A
editora agradece qualquer informação relativa à autoria, titularidade e/ou outros dados que
estejam incompletos nesta edição, e se compromete a incluí-los nas futuras reimpressões.
9
Introdução
Mesmo para quem não está familiarizado com as téc-
nicas e procedimentos da gravação de um disco de
vinil, não é difícil imaginar que existam padroniza-
ções necessárias para que sejam lançados e distribuí-
dos no mercado como produtos. Padrões que apro-
ximam os mais diversos artistas, de Orlando Dias a
Os Mutantes: seus discos, após a gravação das trilhas,
passam por um conjunto de processos semelhantes.
Existem limites e equilíbrios de frequências sonoras
necessários para que os sulcos que serão gravados no
vinil não se interpolem ou para que os dados de um
CD não excedam a faixa legível pelo equipamento – o
que faria com que a gravação tivesse inúmeros pro-
blemas em sua execução. A engenharia de som e a
linha de produção em série, ainda que atendendo a
diferentes necessidades técnicas, são para todos os
artistas.
Para falar criticamente desses processos em
2013 é fundamental contextualizar a mídia analó-
gica no momento atual, onde a circulação da música
independe das mídias físicas, adquirindo por vezes
1110
o comportamento de vírus de vida curtíssima. A
mídia analógica ganha hoje uma “estranha pre-
sença”, uma imposição tátil. Assim, pensar o disco
de vinil e a gravação fonográfica é também descre-
ver a ritualização de seu uso e o modo como o valor
da sua materialidade se revelou melhor quando a
mídia analógica deixou de ser tão presente na vida
das pessoas. Quando o disco vira objeto de aprecia-
dor, passa a existir uma distância sobretudo econô-
mica que possibilita outras leituras. Adorno, em “A
forma do disco” (“Die Form der Schallplatte”), já
havia pensado no papel do disco de vinil na vida
privada e no significado da posse de uma coleção
musical:
Não é no tocar do gramofone como substituição da
música ao vivo, mas na gravação fonográfica como
objeto que reside seu significado estético e potencial.
Como um produto artístico da decadência, ele é o
primeiro meio de apresentação musical que pode ser
possuído como coisa. Não como pinturas a óleo, que
olham para os vivos de cima das paredes. Assim como
essas mal cabem em um apartamento hoje, não exis-
tem de fato gravações fonográficas de grande formato.
Em vez disso, discos são possuídos como fotografias:
o século XIX teve boas razões para inventar a grava-
ção fonográfica para ficar ao lado de álbuns de selos e
de fotografias, todos eles formando uma flora de vida
artificial que sobrevive em espaços diminutos e ficam
assim prontos para remontar toda lembrança que esta-
ria fatalmente fragmentada na pressa da vida mundana
(ADORNO, 2002, p. 177).
A decadência cultural à qual Adorno se refere
muito se relaciona na distância entre artista e público
que a gravação fonográfica impõe. Em sua visão, um
registro suficientemente “grande” – no sentido físico
e moral do termo – não poderia fazer o ouvinte acre-
ditar que a experiência da música pudesse ser revi-
vida a cada execução do disco. O disco, para Adorno,
é uma música aprisionada e descolada de seu poder
transformador, cabendo às gravadoras suavizar
esse seu defeito por meio da criação do sistema de
estrelato e idolatria, um sistema que teria o poder
de humanizar falsamente a gravação fonográfica.
No esquema do estrelato, inventado pela indústria
fonográfica, os ídolos são os que vivem, os ídolos são
os que se transformam, se envolvem em polêmicas,
realizam grandes obras. Como afirma Jacques Attali
(Noise: The Political Economy of Music) os discos são
meios pelos quais percebemos passivamente as trans-
formações dos mitos da música.
Este livro mostra como artistas visuais tornaram
tangível e manipulável a imagem dos mitos da música.
As narrativas construídas pela indústria fonográfica
motivaram boa parte das obras aqui citadas e fazem
parte da trama crítica de diversos desses trabalhos,
demonstrando como tanto o ídolo quanto o processo
da gravação fonográfica podem ser reapropriados em
projetos que propõem uma vida diferente daquela à
qual foram primeiramente destinados.
1312
Por outro lado, a posição radicalizada de
Adorno contra a coisificação da produção cultu-
ral serve a este livro para examinar como a mídia
fonográfica é inseparável de sua vocação da escrita
e como essa natureza a torna um instrumento
de produção estética em si. Esse ponto de vista é
importante também para entender como a gravação
fonográfica deixa ao longo do século XX seu papel
original de registro – predominantemente antropo-
lógico – do ao vivo. A gravação fonográfica deixa de
servir somente ao field recording para servir a uma
economia que transforma música em produto.
O colecionismo examinado e condenado por
Adorno é um fenômeno social importante para
compreender a construção da afetividade em torno
da gravação fonográfica que só foi possível porque
a indústria da música patrocinou – com a ajuda da
imprensa radiofônica e televisiva – um aprendizado
perceptivo para a apreciação da música gravada e
estabeleceu parâmetros de gosto para essa aprecia-
ção dentro dos nichos desse mercado consumidor.
A afetividade pelo disco só seria possível se esses
objetos de fato adquirissem vida própria na socie-
dade, tornando-se – e aqui cito Waltercio Caldas –
uma segunda natureza, coisas inquestionáveis por
meio das quais conseguiríamos construir ou refor-
çar relações sociais ou facilitar o contato com des-
conhecidos (quantas amizades e amores não nasce-
ram por causa de bandas e discos?). Os artistas aqui
comentados criticam o apego fanático e acrítico
pelo disco ao indagarem a razão de ser desse objeto,
e o fazem antes de o utilizarem como um suporte de
uma escrita específica.
Se levarmos em conta a decadência na qual a
economia das mídias físicas hoje se encontra, é irô-
nico demais certos artistas e bandas hoje optarem por
lançar seus álbuns no velho vinil. A nostalgia é disfar-
çada de “valor do objeto”, a possibilidade da arte pre-
sente na capa com dimensões maiores, a aclamada
qualidade do áudio e o rito que envolve sua escuta.
Essa atitude vintage tão condenada em
Retromania,1
de Simon Reynolds (um livro todo
dedicado a examinar como o vintage desencoraja a
criação de novos estilos e a disseminação das ino-
vações musicais mais recentes), deixa ainda mais
interessante o fato de que os artistas visuais experi-
mentaram com as ferramentas da gravação fonográ-
fica em vinil enquanto esta indústria ainda estava
em seu apogeu. De certa forma, esses artistas visuais
já demonstravam como o disco seria compreendido
após o fim de seu reinado como mídia sonora prin-
cipal: como um objeto-fetiche.
Os artistas visuais brasileiros que experimen-
taram com as ferramentas da gravação fonográfica,
1 Cf. Simon Reynolds, Retromania: Pop Culture’s Addiction to its
own Past, London, Faber&Faber, 2011.
1514
como Cildo Meireles, Waltercio Caldas e Chelpa
Ferro, distorcem propositalmente alguns dos proce-
dimentos padrões desse complexo, revelando seus
limites e estratégias mercadológicas. Alguns deles
não agem exclusivamente sobre a forma e função
do disco de vinil e do CD, interessando-se também
na interação desses formatos com o conteúdo que
suportam: os ídolos e mitos da música gerados na
construção de narrativas que integram sonoridades
poderosas e imagens sedutoras.
A grave situação política da década de 1960 fez
com que artistas visuais e músicos se aproximassem
ideológica e esteticamente em ações conjuntas, como
aconteceu com Hélio Oiticica e os tropicalistas baia-
nos.Dessesencontros,gerou-seumimagináriosonoro
e performático no qual artistas visuais propunham
novas formas de recepção dessa produção musical, em
rebeldia às formas predominantes de colecionismo,
culto à imagem e idolatria de mitos. A identificação
com essas ações transformadoras de como a música
poderia ser recebida/distribuída motivou alguns artis-
tas da geração seguinte – já naturalmente predispostos
a lidar e a apreciar a sonoridade e os produtos dessa
indústria – a atuar no estúdio fonográfico efetiva-
mente, sob uma estrutura de produção propícia, que
então adquirira um custo relativamente baixo.
Além de examinar as relações, celebrações e
críticas que os artistas citados fizeram com os íco-
nes da indústria fonográfica, este livro descreve
como foram executadas essas experimentações em
estúdio, em uma contribuição para a compreensão
dos trabalhos além da execução de sua sonoridade.
Certos contextos históricos e condições técnicas
que levaram os artistas a experimentar com a grava-
ção fonográfica podem influenciar diretamente na
natureza da sonoridade que irão produzir e como
ela deve ser recebida pelo ouvinte.
Este livro é uma edição ampliada de parte dos
capítulos da dissertação de mestrado Ouvindo as
Artes Visuais: sonoridades de Hélio Oiticica, Cildo
Meireles, Chelpa Ferro e Waltercio Caldas, escrita na
Universidade de Princeton, defendida na Escola de
Música da UFRJ e vencedora do Prêmio Funarte de
Produção Critica em Música 2013. Durante a pes-
quisa, houve grande dificuldade em encontrar os dis-
cos em arquivos públicos destinados às artes visuais
no Rio de Janeiro. Ainda que houvesse livros men-
cionando as obras em instituições como a Funarte
(RJ), o MAM (RJ) e a Biblioteca Nacional, os discos em
si não constavam nos arquivos até o início de 2012.
Assim, o acesso a esses materiais aconteceu em con-
tato direto com os artistas ou por meio de colabora-
dores – como Rodolfo Caesar, orientador da minha
dissertação, que também me apresentou diversas das
obras que examino aqui; Hermano Vianna, que me
cedeu uma cópia do Compacto Simples de Waltercio
1716
Caldas, e o próprio Chelpa Ferro, que além de seus
próprios discos forneceu acesso a uma cópia de
Mebs/Caráxia, de Cildo Meireles. Por fim, realizei
uma pesquisa posterior no arquivo do MoMA em
Nova Iorque, onde encontrei as duas gravações em
vinil existentes de Cildo Meireles. O artista também
me presenteou com uma cópia de seu disco mais
recente, Rio Oir, feito como um projeto especial do
Itaú Cultural em 2011.
Nessas aproximações, tive a oportunidade
de colher depoimentos dos artistas e também de
ter conversas sobretudo informais sobre música.
Nessas trocas, discutimos sobre o nosso repertório
musical favorito e resgatamos algumas experiências
de shows e apresentações, eventos nos quais pode-
mos atribuir uma vida física real aos artistas com
quem até então só nos relacionávamos pela escrita
sonora da mídia do disco.
Dessa maneira, as descrições críticas dos discos
de artistas presentes nesse livro serão ilustradas com
acontecimentos históricos que, com a objetividade
que esse formato impõe, irão ampliar a compreen-
são das experimentações ainda pouco conhecidas.
Ironias e reverências:
artes visuais e o imaginário
da música popular
Desde a década de 1960 existem no Brasil artistas
que propõem incorporar a sonoridade e fazer refe-
rências a grandes ícones da música popular sob pos-
turas que variam da celebração à critica. Seja qual
for a conotação do discurso a que tais apropriações
dão forma, eles se sustentam na divisão econômica
das artes (estamos aqui, artistas visuais, trabalhando
sobre o que está ali, na música popular) e refletem
um conjunto de dinâmicas culturais das grandes
cidades que provocam encontros entre artistas de
diferentes campos artísticos, seja na forma na qual
unem manifestações culturais de regiões apartadas,
seja nas circunstâncias festivas, especiais e metropo-
litanas nas quais surgem.
Uma dessas livres incorporações dos ícones da
indústria fonográfica aconteceu na cidade de São
Paulo na década de 1960. Na Rex Gallery & Sons
– uma galeria independente de inspiração neoda-
daísta fundada por Nelson Leirner (1932-), Wesley
1918
Duke Lee (1931–2011) e Geraldo de Barros (1923–
1998)1
– foi construída uma instalação fazendo refe-
rência a Roberto Carlos. Leirner, que assina o tra-
balho Adoração ou Altar a Roberto Carlos, de 1966,
foi instigado pela capacidade da indústria da música
em construir ídolos com características religiosas:
na instalação de dois ambientes – uma catraca de
entrada e o altar propriamente dito, separados por
uma cortina – o cantor é canonizado silenciosa-
mente. A ironia é apresentada de forma ainda mais
exacerbada na imagem que é colocada no altar: o
retrato do cantor é contornado por lâmpadas neon,
uma espécie de negrito visual para seu papel de “rei
da juventude” e uma referência ao recurso luminoso
em voga na publicidade da época.
Um ano antes da Adoração e sem lidar com
imagens, ícones ou adotar qualquer tipo de ironia,
Hélio Oiticica se integra ao poder mobilizador da
música popular e “arma um barraco no MAM”2
na
exposição Opinião 65, idealizada por Jean Borghici
e Ceres Franco. Levando um cortejo de sambistas
vestidos em parangolés ao Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro na abertura da exposição, os diver-
sos passistas da Estação Primeira de Mangueira
dançavam e tocavam instrumentos de percussão
1 Cf. LEIRNER; et al, 2002.
2 SALOMÃO, 1996, p. 57.
em comitiva pelas galerias que abrigavam uma
exposição coletiva de Rubens Gerchman, Antonio
Dias, Waldermar Cordeiro, Ângelo de Aquino, José
Roberto Aguilar, Carlos Vergara e Tomoshige.
Como narra o jornalista Claudir Chaves, o
artista acaba sendo expulso do museu pela equipe
de segurança sob a justificativa do “barulho dos
pandeiros, tamborins e frigideiras”, o que não impe-
diu o artista de continuar sua ação com o cortejo,
agora nos jardins do MAM e assistidos por críticos,
artistas, jornalistas.3
Ironicamente forma-se uma situação onde
o museu se protege atrás do escudo da preserva-
ção do silêncio para retirar o cortejo de sambistas
– representantes de camadas sociais pobres e de
regiões metropolitanas estigmatizadas – de seus
domínios: protegia-se assim a experiência ótica do
perigo alienígena, sonoro e popular. Soma-se assim
mais um argumento e evidência para o movimento
estético que levou o artista à sua conhecida “desco-
berta do corpo”. Essa descoberta era para Hélio a
“volta ao mundo”, “um ressurgimento de um inte-
resse pelas coisas, pelos problemas humanos, pela
vida em última análise” e estava intrinsecamente
relacionada às andanças que iniciou pelas favelas
do Rio de Janeiro com o artista Jackson Ribeiro a
3 Cf. VIANNA, 1995, p. 1 e SALOMÃO, 1996, p. 34.
2120
partir de 1964.4
Como descreve Waly Salomão em
Qual é o Parangolé, a área dessas caminhadas “com-
preendia arrepios e rodopios também em outras
‘jurisdições’” além do Morro da Mangueira, onde o
artista se deparava com “as janelas, as portas e as
bocas quentes da percepção” dos bairros popula-
res. Tal descondicionamento geográfico do artista,
ao descer do que Mário Pedrosa chamou de “torre
de marfim de seu ateliê” para vivenciar encontros e
amizades no morro, só potencializou a contamina-
ção da musicalidade em seu trabalho, algo que os
Parangolés (1964) revelam com clareza.
A trajetória de Hélio Oiticica pós-Parangolé é
talvez uma das mais representativas para abordar as
aproximações das artes plásticas com a música popu-
lar no Brasil, dada a maneira e a circunstância polí-
tica que o levou a esse tipo de debate estético. Assim
como José Celso Martinez, Glauber Rocha, Lygia
Clark e Rogério Duarte, o artista já estava inserido
no começo da década de 1960 em diferentes contex-
tos artísticos e intelectuais onde se discutiam as bases
da ideia de “tropicália”, muito antes que o tropica-
lismo musical ganhasse algum destaque midiático.5
É Oiticica que pela primeira vez utiliza a palavra
Tropicália: fora um nome dado a um Penetrável que,
4 OITICICA, doc. n. 0158.68, p. 1, AHO/PHO.
5 COELHO, 2010, p. 125.
segundo o artista, era “a primeira tentativa cons-
ciente, objetiva de impor uma imagem obviamente
‘brasileira’ ao contexto atual da vanguarda e das
manifestações em geral da arte nacional”.
Caetano Veloso apropria-se do título do pene-
trável para dar nome à primeira canção do seu
álbum de estreia,6
produzido por Júlio Medaglia e
lançado pela gravadora Philips em 1967. É uma can-
ção grandiosa, construída por sucessões de imagens
e metáforas do Brasil, intercaladas por repetições
rítmicas (“Viva Maria, ia ia”) que as celebram em
sua particularidade ou contradição. A pertinência
conceitual desse termo é tal que os músicos baianos
o levarão adiante como bandeira de um desenvol-
vimento-ruptura musical, chamado posteriormente
de tropicalismo. Não obstante, o artista plástico
questionaria os fins para os quais interessaria a for-
mação de um ismo – o que comunicava claramente a
intenção de se formar um outro movimento de van-
guarda – sob o conceito que ele próprio inventara.
Como afirma Frederico Coelho, a postura inicial
frente à intenção dos músicos baianos é “antitropi-
calista”, questionando “o rápido triunfo dos músicos
baianos e paulistas em relação à sociedade de mas-
sas e seus desdobramentos populares e comerciais”,7
6 BRETT e FIGUEIREDO, 2007, p. 30.
7 COELHO, 2010, p. 122.
2322
referindo-se assim à vinculação da música tropica-
lista à indústria fonográfica, sem a qual seria impos-
sível sua difusão nacional.
Segundo Frederico Coelho, o ano de 1968 foi
determinante para que Hélio Oiticica mudasse
sua atitude defensiva em relação ao tropicalismo
musical, declarando publicamente a influência dos
músicos baianos em seu trabalho e escrevendo
ensaios sobre essa colaboração artística quando se
muda para Londres no ano seguinte.8
Os anos de
chumbo da ditadura brasileira que seguiram o AI-5
só fizeram reforçar tais relações, cumplicidade que
é claramente percebida na quantidade de documen-
tos, ensaios, gravações em áudio (as Héliotapes)
que o artista produziu com a participação dos
tropicalistas.9
Se existem registros visuais que comunicam
como esse diálogo entre Oiticica e músicos foi ao
mesmo tempo acalorado e prolífero, destacam-se as
fotos que Andreas Valentim faz de Caetano Veloso
vestindo o P04 Parangolé Cape 01 em 1968; e a ban-
8 COELHO, 2010, p. 128.
9 Documentos listados no Programa Hélio Oitica [Itaú Cultural]:
TROPICÁLIA TIME SERIES 3 / CAETANO VELOSO (doc. No. 0353/69),
GILBERTO GIL (doc. n. 0216/71o), Tropicália Time Series 4/
Gilberto Gil (doc. n. 0360/69), TROPICALIA: the IMAGE PROBLEM
surpassed by that of a SYNTHESIS (doc. n. 0350/69), Música popu-
lar brasileira (doc. n. 0135/68), Gilberto Gil [Héliotapes](doc. n.
0500/71).
deira de Oiticica com o lema “Seja Marginal, Seja
Herói” estendida ao fundo no palco de uma apre-
sentação dos tropicalistas no clube Sucata no Rio de
Janeiro10
no mesmo ano. O próprio Caetano Veloso
reconhece como o uso da bandeira visava incitar os
militares,11
ação que trouxe o resultado desejado: o
agente do DOPS Carlos Mello denunciou a obra de
Oiticica, acirrando ainda mais o cerco aos artistas.12
Dessa maneira, compreende-se que não havia
mais, da parte de Oiticica, como alimentar discor-
dâncias sobre a precisão de uso de termos concei-
tuais e a definição original de “tropicália” frente à
ameaça real e à violência do governo militar após
o mais opressor dos atos institucionais. Percebe-se
que a urgência da situação política leva o artista
a adotar uma posição mais tática. Como afirma
Frederico Morais em Contra a Arte Afluente: O
Corpo é o Motor da “Obra”, ser artista na década de
1970 era ser um guerrilheiro, e sua arte uma espécie
de emboscada que propõe situações ou se apropria
de objetos e eventos sobre os quais não pode con-
tinuamente exercer formas de controle, assim, sob
as muitas restrições opressoras da censura e da vio-
lência do Estado, questionava-se continuamente o
10 DUNN, 2001, p. 142.
11 VELOSO, 2007, s.n.
12 DUNN, 2001, p. 144.
2524
que era a “instituição da arte”.13
Nesse sentido, Hélio
Oiticica trabalhava nesse período sob o que cha-
mava de antiarte: a sugestão, ou anúncio de que a
obra de arte como coisa acabada havia morrido.
Nessa nova ética de trabalho, a apropriação de
imagens e material sonoro da indústria fonográfica
anglófona – a indústria dominante – se intensificará
progressivamente durante o exílio voluntário em
Londres em 1969 e no período de 1970 a 78 quando o
artista reside em Nova Iorque. Já se completam oito
anos do episódio do Opinião 65 no MAM, e o artista
passa a expressar o mesmo entusiasmo criativo e vital
que possuía pelo samba em relação ao rock, conside-
rando-o tão poderoso na revelação do corpo quanto
o ritmo do Morro da Mangueira. É sob esse dis-
curso – renovado e cosmopolita – que Oiticica jun-
ta-se a Neville D’Almeida e cria o CC5 Hendrixwar/
Cosmococa Programa-in-Progress, um ambiente com
redes de descanso, música de Jimi Hendrix e proje-
ções de fotografias do guitarrista com a intervenção
dos desenhos de cocaína de D’Almeida. Como em
seus Penetráveis, o público participava ocupando
esse lugar construído para ativá-los sensorialmente.
Ali deitam nas redes, ouvem música e assistem às
projeções de slides: um lugar para a dissolução das
separações entre plateia, narrativa e sensorialidade,
13 MORAIS, 1970, p. 171.
povoado pelas imagens e sonoridades do guitarrista
mitológico. Dentro da ideia de que o som do rock e
do samba ativa corpos e espaços, amalgamando-os,
Helio Oiticica, nos últimos anos de sua vida, chega a
afirmar que sua arte é música:
[...] descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é
“uma das artes” mas a síntese da consequência da des-
coberta do corpo: por isso o ROCK p. ex se tornou o
mais importante para a minha posta em cheque dos
problemas chave da criação (o SAMBA em q me ini-
ciei veio junto com essa descoberta do corpo no início
dos anos 60: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos
e é impossível separar um do outro): o ROCK é a sín-
tese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo
q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como
totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI
HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes
para a compreensão plástica da criação do q qualquer
pintor depois de POLLOCK: a menos q queiram os
artistas ditos plásticos continuar remoendo as velhas
soluções pré-descoberta do corpo ao infinito: e não é
o q está acontecendo de certa forma?: não seria a essa
síntese MÚSICA p totalidade plástica a q teriam con-
duzido experiências tão diversas e radicalmente ricas
na arte da primeira metade do século quanto as de
MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI? E porque é
q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar
tanto em ARTAUD? (OITICICA, 1979, s.n.).
É interessante comparar a transformação do
discurso de Oiticica com relação à música que só
se faz possível por meio da profusão fonográfica:
2726
o objetivo mercadológico, principal motivo para a
crítica que primeiramente expressou em relação ao
tropicalismo musical, muda de lugar. Oiticica reco-
nhece e reverencia o poder da narrativa dos mitos
do rock anglófono, ainda que construídos (e talvez
por justamente o serem), e equipara a intensidade
da experiência estética de sua música à de nomes
principais da História da Arte. É contundente a
observação que Oiticica faz sobre os mitos do
rock anglófono e da arte europeia e norte-ameri-
cana, e no sentido em que ambos os sistemas que
se impõem como segunda natureza, como narra-
tivas históricas principais, elas se relativizam e se
revelam como construções e jogos de poder em
apropriações como o CC5 Hendrixwar/Cosmococa
Programa-in-Progress.
Recontextualizações dos símbolos da indústria
fonográfica, como fez Hélio Oiticica, nos ilustram o
início de uma aproximação entre artistas e música
no Brasil. Se houve um motivo político para que
Oiticica se unisse aos músicos tropicalistas e visse
em Hendrix a expressão da liberdade, as propostas
de Cildo Meireles deixam a manifestação artística
por meio de ícones e estandartes para se dar por
intervenções em materiais, ambientes e procedi-
mentos próprios da economia da música. O estú-
dio, o disco e produção fonográfica nos anos 1970 se
tornam assim um novo campo de experimentação.
Um breve histórico
da economia do disco no Brasil
Quando Cildo Meireles grava seu primeiro disco,
Mebs/Caraxia, em 1970 – a gravação em vinil mais
antiga da qual este livro trata –, a indústria fono-
gráfica já estava consolidada no país há quase sete
décadas. A estrutura industrial que se desenvolve
no início do século XX propulsionada pelo cresci-
mento do mercado mundial de fonógrafos e seus
cilindros de cera, gramofones e seus discos, terá
como importante combustível a necessidade de
companhias europeias de encontrar mercados
fora do continente assolado pela crise da Primeira
Guerra. Empresas alemãs, cuja importância era cen-
tral para a indústria fonográfica do período, tiveram
seus bens confiscados em diferentes países, pressio-
nando ainda mais a urgência da expansão para a
América e Ásia.1
Foi nessas circunstâncias que a International
Zonophone Company firmou um acordo comer-
1 FRANCESCHI, 1984, p. 93.
2928
cial com uma figura pioneira na consolidação da
economia fonográfica no Brasil, Frederico Figner.
Norte-americano de origem tcheca, os fonógrafos
que trouxera dos Estados Unidos em 1891 encanta-
vam o público em audições coletivas no Belém do
Pará, Manaus, Recife, Fortaleza, Salvador, Natal e
no Rio de Janeiro, onde se instalou definitivamente.
As audições promovidas por Figner, com um certo
toque de ilusionismo e espetáculo de mágica, eram
experiências que preconizaram o que seria o cinema
alguns anos mais tarde, quando chegou ao Brasil em
1897: nessas sessões o público não só ouvia, incrédulo,
o som gravado, como testemunhava registros feitos
em cilindros de cera nas próprias salas de audição.
Em sucessão ao fonógrafo, o surgimento do gra-
mofone – então uma nova tecnologia que utiliza a
mídia do disco simples ou duplo – significaria outras
oportunidades para o comerciante norte-americano
no Brasil. Não só o aparelho tocava as gravações muito
mais alto, o que permitia um público maior em audi-
ções coletivas, como a Zonophone, quando percebeu
a hegemonia de Figner sobre o mercado brasileiro,
ofereceu a ele a possibilidade de produzir gravações
de artistas brasileiros em discos duplos em troca de
representação exclusiva e de um investimento finan-
ceiro considerável. Funcionaria da seguinte maneira:
a Zonophone se comprometeria a produzir um reper-
tório de 100 matrizes de 10 polegadas e 250 de 7 pole-
gadas desde que fossem pedidas 250 cópias de cada
uma delas e que fossem comprados 50 gramofones
Zonophone por mês. O empresário também deveria
arcar com os custos de alfândega no desembaraço dos
equipamentos e materiais e remunerar os artistas.
Foiassimqueoacordopossibilitouavindadeum
técnico da Alemanha em 1902 para o que seria a pri-
meira gravação dos discos brasileiros. Artistas como
Cadete, Bahiano e a Banda do Corpo de Bombeiros
foram gravados pelo técnico da Zonophone na Casa
Edison, que enviaria os discos de cera de volta à
fábrica de Joseph Berliner, em Hanover, para serem
transformadas em matrizes de cobre. Na Alemanha,
os discos foram prensados e depois exportados para
o Brasil para a comercialização. O sucesso foi rápido:
entre 1911 e 1912, a Casa Edison vendeu 840 mil discos
nopaís,umnúmerosurpreendenteseforconsiderado
como a tecnologia de áudio era economicamente ina-
cessível para a maior parte da população brasileira de
então, e que só reforça o poder do controle de mer-
cado, ou cartel, que Frederico Figner defendia junto à
International Talking Machine. Figner e a companhia
detinham patentes locais das tecnologias e mídias de
gravação com as quais processavam judicialmente
qualquer outra empresa que pretendia se instalar no
país, minando ao máximo a concorrência.
Somenteem1912opaísterásuaprimeirafábrica
de discos, a Fábrica Odeon, construída também por
3130
Frederico Figner no Rio de Janeiro. A construção
foi patrocinada pela International Talking Machine,
marca pertencente à norte-americana Victor Talking
Machine, que havia comprado a alemã Zonophone
nove anos antes dessa nova empreitada na América
do Sul. Em seus primeiros anos, a fábrica processava
os registros sonoros por meios mecânicos, evoluindo
para o processo elétrico doze anos depois, quando
foi vendida para a Transoceanic Trading Company.
Esse avanço tecnológico agradou aos ouvidos do
público, considerando que em vez de somente regis-
trar a energia mecânica do som no disco – o que
reduzia nuances sonoras e exigia dos músicos uma
distorção na performance para que o som da voz ou
do instrumento fosse melhor captado – o processo
elétrico acontecia pelo sistema eletromagnético do
microfone condensador. Isso significava que um
espectro muito mais amplo de frequências sonoras
seria registrado na mídia e que o intérprete não mais
necessitaria adaptar sua performance para os limites
do cone de captação do antigo processo mecânico.
A partir de então, com a possibilidade de utilizar
múltiplos microfones, posicioná-los da maneira
que convinha ao engenheiro de gravação e captar a
reverberação do som no estúdio, o espaço tornou-se
também um elemento estético e até mesmo um ins-
trumento da gravação.2
2 CACERES, 2010, p. 92.
Humberto Franceschi, autor de O Registro
Sonoro por Meios Mecânicos no Brasil, enfatiza a
dinâmica entre a cultura da música popular brasi-
leira e a expansão do mercado fonográfico no país,
descrevendo como a tecnologia da gravação deve-
ria se adaptar a essa estética, ao mesmo tempo que
“criava a unidade de linguagem da música e, além
de cristalizar o sucesso, definia o momento musical
da época”. É sabido que muitos gêneros de sucesso
do início do século se adaptaram às condições téc-
nicas da gravação, assim como o oposto: a delica-
deza do violão do choro e sua composição com a
flauta, cantores e cavaquinho eram um desafio para
os primeiros engenheiros de gravação, que prefe-
riam o grande rendimento sonoro da interpretação
das bandas militares, que seriam melhor registradas
pelos limitados processos mecânicos.
No entanto, na sede pela expansão de mercado,
essas adaptações técnicas foram rápidas o bastante
para assimilar todos os gêneros em voga na época:
as modinhas, lundus, tangos, valsas e dobrados esta-
vam disponíveis em disco.3
De forma mais cética,
José Ramos Tinhorão examina em A História Social
da Música Popular Brasileira que a música sofre-
ria transformações que a reduziriam “em fórmulas
fabricadas para a venda”, bastaria “produzir o que
3 FRANCESCHI, 1984, p. 89.
3332
‘o povo gosta’”. Na análise de Tinhorão, a indústria
fonográfica do início do século já exibia as bases
culturais e mercadológicas pelas quais foi possível
disseminar modismos, manipular códigos de com-
portamento, criar o sistema do estrelato e influen-
ciar a procura por um determinado estilo musical
por muitas décadas, poder que somente terá seu
declínio nesta última década.
No lastro desse sucesso comercial e na varie-
dade de métodos de gravação que se fizeram pos-
síveis pelo processo elétrico – significando uma
menor restrição de patentes –, outras fábricas
se estabelecem no mesmo período da década de
1920, como a Parlophone Columbia em São Paulo
e Brunswick e Victor no Rio de Janeiro. Apesar de
pouco ameaçarem o império da Odeon, seu surgi-
mento foi de grande impacto para a produção cul-
tural da época: com uma cadeia econômica mais
ampla e com maior capacidade de distribuição, a
imprensa decide dedicar ao disco sessões de jornais
como O País e o Cruzeiro e até mesmo criar uma
revista especializada, a Phono Arte.4
O que surpreende é que a história da indústria
fonográfica no Brasil ao longo do século XX rara-
mente teve períodos consistentes de estabilidade: é
uma história que percorre crises sucessivas, como
4 SEVERIANO, 2008, p. 101.
por exemplo a crise de 1929, que acompanhou a
recessão americanaetambémfoiatribuídaàpopula-
rização do rádio, implementado no país em 1922 por
Edgar Roquette Pinto. Este novo sistema de trans-
missão sonora era então desatrelado da indústria da
gravação fonográfica, ou seja, a maior parte do con-
teúdo vinculado no rádio era produzido ao vivo. Os
produtores da época ainda não haviam estruturado
um sistema de coleta de direitos de reprodução dos
discos pelos quais poderiam gerar renda, o que sig-
nifica que houve um momento durante os primeiros
anos da década de 1920 onde a indústria fonográfica
e as emissoras de rádio eram sistemas independen-
tes, não havendo dinâmicas econômicas capazes de
remunerar autores, produtores e a gravadora pela
execução pública da obra.
As décadas de 1930 e 1940 foram determinantes
para o fortalecimento do rádio e para a definição
de seu papel político, seja como uma ferramenta
que vincularia o discurso nacionalista de Getúlio
Vargas, seja como um dos sistemas de comunicação
– junto ao cinema e à própria indústria fonográfica
– pelos quais a aproximação cultural entre Brasil e
Estados Unidos se daria. É no início desse período
também que o rádio torna-se menos amadorístico,
já que encontraria um novo e promissor modelo
econômico que até então se baseava em doações e
mensalidades “voluntárias” dos ouvintes: em 1932,
3534
Vargas autoriza o rádio a fazer propaganda comer-
cial remunerada.5
José Severiano, historiador e pro-
dutor musical, compreende que o fortalecimento da
indústria do rádio, a inovação do sistema elétrico
de gravação e o advento do cinema falado são fato-
res determinantes para a inauguração de um novo
período na cultura brasileira, chamado por diver-
sos autores de “Época de Ouro”, que vigorou até o
meio da década de 1940, e que sofreu a regulação
do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda),
órgão criado pelo governo Vargas que promovia a
censura de letras, proibia ou incentivava o uso de
temas específicos e patrocinava o projeto de “puri-
ficação” do samba.6
O Departamento de Imprensa
e Propaganda se dissolve junto com a queda de
Vargas, deixando, no entanto, as bases para as próxi-
mas estruturas de regulação e censura da produção
cultural brasileira.
A indústria fonográfica sob o governo de
Kubitschek receberá importantes inovações tecno-
lógicas que modificarão permanentemente a dinâ-
mica da gravação em estúdio. A fita magnética e a
possibilidade de gravar em oito diferentes canais
de áudio dão ao produtor a opção de gravar instru-
mentos separadamente em substituição à gravação
5 SEVERIANO, 2008, p. 99.
6 Ibid., p. 100.
de uma performance única com todos os músicos.
Esse método que sucedeu a gravação em cera tam-
bém estende consideravelmente o tempo de grava-
ção, possibilitando assim o surgimento do formato
Long Play (LP) na mesma década.
A contradição de todos esses avanços técnicos
no Brasil de Juscelino é que eles não se expressam
com o mesmo vigor na arquitetura dos ambientes
da gravação fonográfica. Em 1955, a situação técnica
dos estúdios da Odeon era modesta, segundo os
relatos de André Midani: o estúdio se reduzia a “um
espaço mínimo, com um tratamento acústico que
se limitava a umas placas de compensado aqui e ali,
sem ar-condicionado”.
A Odeon só teria melhores condições depois
da reforma empreendida naquele ano pelo britâ-
nico Bill Morris, então presidente da companhia.
O investimento será fundamental para que se torne
tecnicamente possível gravar a importante produ-
ção da geração de músicos que surgiria logo depois:
a geração da bossa-nova.
Midani é enfático ao descrever como esse novo
gênero transformaria as relações entre o estúdio de
gravação e o artista:
Um dos melhores exemplos é, de novo, João Gilberto,
que impôs gravar 13 vezes a mesma canção até se dar
por satisfeito, numa época em que o intérprete normal-
mente tinha o direito de repetir somente duas ou três
3736
vezes a sua performance. Outra mudança fundamental
aconteceu na relação entre arranjadores e cantores: até
então, com raríssimas exceções, o arranjador/produtor
escolhia a música que considerava conveniente para
o cantor, determinava o tom do arranjo, escrevia sem
muito consultar o intérprete, que, no estúdio, tinha
meia hora para colocar a voz (MIDANI, 2008, p. 79).
A partir da nova geração da música brasileira,
e sob melhores condições tecnológicas, o artista
passou a ter maior propriedade sobre o processo
da produção do disco. Midani também enfatiza a
maior proximidade que o intérprete tinha com a
própria estética de sua produção, tendo cada vez
mais “liberdade na escolha do repertório e no enca-
minhamento do arranjo”. Essa diferença também se
expressa nas vendas. A bossa nova foi um conjunto
compreensivo de inovações musicais, imaginários
urbanos e códigos de comportamento que se des-
tinavam a um novo nicho do mercado: o público
jovem, antes pouco atendido pelo mercado fono-
gráfico como um grupo com características especí-
ficas. É preciso lembrar que a presença da TV, cada
vez mais pungente na década de 1950, permitiu uma
maior exposição dos artistas em programas musi-
cais, onde eles poderiam mostrar toda sua “bossa”
e sofisticação, além de dar inúmeras oportunidades
de publicidade e divulgação à indústria fonográfica.
Assim, nesse período surge o “marketing psica-
nalítico” na economia da música, que visava poten-
cializar a empatia do artista de uma determinada
gravadora com seu público. Partia-se do princípio
de que certos artistas estavam naturalmente predis-
postos a disseminar imagens e valores com as quais
um grande número de pessoas poderia se identificar.
No entanto, para que essa identificação acontecesse
de forma espontânea e profunda, era necessário que
fosse comunicada no inconsciente coletivo uma certa
genuinidade com a qual o artista compunha e inter-
pretava suas obras. Era preciso, portanto, colocar essa
genuinidade à prova, moldá-la e empacotá-la em um
embrulho que seria enviado direto a um inconsciente
de emoções, memórias e desejos em entrevistas na
mídia televisiva ou impressa, ou em situações cuida-
dosamente planejadas pelo produtor e pelos gravado-
res que seriam depois relatadas em jornais e revistas.
O mito, a partir de então, transbordava a mídia fono-
gráfica, televisiva e radiofônica e lançava-se na vida
quotidiana, no imaginário do público. O momento
da Era dos Festivais, cujo período de maior relevân-
cia se concentra entre 1966 e 1968, era propenso a
essas experiências, já que as competições musicais
estavam no centro das atenções das mídias massivas
da época. A música então ocupava um tempo pri-
vilegiado da atenção dos espectadores e modulava
suas emoções e opiniões.
A segunda grande crise do mercado fonográ-
fico aconteceu também na década de 1960, acom-
3938
panhando a crise que seguiu o fim do governo de
Juscelino,causadapelaquedabrutaldoinvestimento,
a alta da inflação e a redução da taxa de renda bra-
sileira, motivos pelos quais se justificou a criação do
PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo).
Junto ao argumento do “perigo comunista” personi-
ficado pelo presidente eleito João Goulart, foi dado
o Golpe Militar de 1964. Sob circunstâncias menos
otimistas que as do desenvolvimentismo do governo
anterior, o lirismo e a delicadeza da bossa-nova pas-
sam a ser menos bem recebidos pelos meios televi-
sivos, que estavam agora mais propensos à grandio-
sidade musical dos festivais e às polêmicas que os
envolviam. A mudança de recepção se manifestou
também no público consumidor jovem, que começa
a se dividir: uma parcela passa a se tornar cada vez
mais politizada, e outra busca no iê-iê-iê da Jovem
Guarda a trilha para o desejo de viver uma situação
econômica muito menos precária e pessimista do
que aquela que os cerca.
As gravadoras se posicionam favoráveis tanto
a patrocinar uma música que desse vazão à crítica
socialquepartedomercadojovemqueriaentãoouvir
quanto a atender a parcela mais apolítica e evasiva. O
gênero que poderia dar cabo simultaneamente des-
sas duas parcelas do mercado foi o rock, ainda que
interpretado por artistas de estética e posicionamen-
tos políticos radicalmente divergentes. As sutis iro-
nias da Tropicália e sua originalidade de propostas
de reinvenção do Brasil que se manifestavam em
sua música e vida encontraram na guitarra elétrica
a energia sonora necessária para que essa mensagem
fosse suficientemente poderosa e nacional. Ainda
que até 1971 os tropicalistas não fossem sinônimo
de sucesso de vendas, forçando gravadoras como a
Philips a administrar seu orçamento tendo no elenco
artistas de maior saída, que fechariam as contas,7
o
movimento é um ótimo exemplo de como o mercado
fonográfico encontrou maneiras de assimilar a com-
plexidade social e política que assolava o país.
O disco compacto da canção “É proibido proi-
bir”, de Caetano Veloso, ilustra um pouco dessa cria-
tividade. O músico, em uma apresentação no TUCA
(Teatro da Universidade Católica) em 1968 no III
Festival Internacional da Canção, já abalado pela
hostilidade do público durante as apresentações que
precederam a d’Os Mutantes, enfurece-se quando
começa a apresentação com essa banda. O som ato-
nal do grupo e a performance provocativa de Caetano
Veloso levam o público a reagir com histeria e vio-
lência, jogando lixo e objetos nos músicos. É pos-
sível afirmar, pela descrição dos relatos de Caetano
Veloso em Verdade Tropical, que a plateia represen-
tava a parcela da juventude que se identificava com
os preceitos da CPC UNE (Centro Popular de Cultura
7 MIDANI, 2008, p. 116.
4140
da União Nacional dos Estudantes) da arte popular
revolucionária: um ideal de que uma elite intelectual
deveria estar a serviço de despertar a consciência das
massas – para ela alienada – por meio de uma arte
genuinamente popular e nacional, o que significava
que deveria estar livre de qualquer influência estética
estrangeira. O que os tropicalistas estavam propondo
ali não estava em concomitância com essa ideologia.
Caetano então grita em protesto ao microfone, uma
lendáriaefuriosareaçãoverbalquerendeuagravação
do Lado B do disco compacto de “Proibido Proibir”.
Música e protesto agora estão literalmente juntos em
um só produto. A CPC UNE também possuía proje-
tos de música e protesto equivalentes, por exemplo
o LP “O Povo Canta”, de autoria da própria CPC com
artistas como Carlos Lyra, Francisco de Assis, Billy
Blanco e Nora Rey, lançado de forma independente
em 1963.
“Aquele Abraço”, de 1969, foi também utilizada
em uma estratégia de promoção dos tropicalistas
elaborada pela Polygram. Caetano Veloso e Gilberto
Gil gravaram a canção na Bahia, tendo em vista que
estavam deixando o país para o exílio compulsório
em Londres. A Polygram aproveitou a circunstância
para lançar a música de despedida no rádio, no exato
momento da decolagem do avião dos músicos.8
8 MIDANI, 2008, p. 117.
Como examina Christopher Dunn em Brutality
Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian
Counterculture sobre a atitude de Caetano Veloso e
dos tropicalistas como um todo, frente às estruturas
da mass media, os músicos reconheciam que “não
havia ‘espaço puro’ para artistas que participavam
na indústria massiva da música. No máximo, os
artistas poderiam criticar o sistema estando dentro
dele enquanto permaneciam coniventes com seu
status de profissionais dessa indústria”. Entendendo
a ambiguidade inerente à carreira de um artista pop
que se posiciona criticamente frente aos valores e
estruturas políticas vigentes, músicos e gravadoras
elaboraram estratégias de ação e exposição, tendo o
crescimento da venda de discos como um dos obje-
tivos principais.
Após o AI-5, experimentos dessa natureza
já não poderiam mais acontecer da maneira que
eram antes feitos. O Departamento de Censura se
impõe frente ao departamento jurídico das grava-
doras brasileiras para regular a produção de todas
as canções que seriam lançadas no mercado. André
Midani narra que essa responsabilidade de regula-
ção foi transferida diretamente para as gravadoras
que deveriam cooperar com os “princípios patrió-
ticos da revolução”, imposição que foi administrada
pela Polygram, que por meio de Midani afirma ter
contornado muitas das exigências proibitórias do
4342
governo militar com auxílio de sua importante posi-
ção em um conglomerado internacional de compa-
nhias fonográficas. O Departamento de Censura,
por sua vez, tentava expandir o procedimento de
regulação de canções até para o catálogo de álbuns
internacionais, que na década de 1970 tivera o seu
maior crescimento.
As décadas de 1960 e 70 são um momento de
transformação da economia fonográfica no Brasil.
Os lançamentos internacionais entre 1972 e 1975
chegam a superar os domésticos em vendas, um
fenômeno que resulta de estratégias de companhias
de capital nacional e estrangeiro que apostam no
crescimento do mercado dos compactos de música
internacional.9
Uma das razões era o investimento
no lançamento do álbum de um artista estrangeiro
ser consideravelmente mais baixo. A gravadora
não precisaria arcar com os custos de produção e
poderia incorporar rapidamente as estratégias de
divulgação do artista – que seria lançado no país já
com aclamação internacional –, além de todo o seu
material gráfico.10
Para compensar a desvantagem
na qual a música nacional se encontrava naquele
momento, foi aprovada uma lei de incentivo por
abatimento fiscal para companhias fonográficas que
9 VICENTE, 2006, p. 119.
10 MORELLI, 1991, p. 48.
investissem em lançamentos de música brasileira.
Os álbuns contemplados pela lei ganhariam o selo
“Disco é Cultura”.11
A internacionalização não se restringe somente
ao catálogo das gravadoras. Novas companhias
transnacionais chegam ao país, como a EMI, que
adquire a Odeon em 1969, a WEA, braço fonográfico
da Warner que se estabelece em 1976, e a BMG em
1979.12
É uma ameaça considerável para a parcela do
mercado atendida pelas gravadoras brasileiras, que
são empurradas, segundo Eduardo Vicente, “tanto
para a prospecção de novos artistas e tendências
como para a exploração de segmentos marginais e
menos rentáveis do mercado, assumindo um papel
similar ao reservado às indies nos países centrais”.
Assim, entre a pressão do Departamento de
Censura, a internacionalização do catálogo e a
expansão das transnacionais no país, seguiu a pro-
dução fonográfica na década de 1970, que rendeu ao
mercado o inédito recorde de 26,3 milhões de cópias
vendidas em 1979 contra 6,7 milhões em 1969.
11 MORELLI, 1991, p. 49.
12 VICENTE, 2006, p. 116.
45
Cildo Meireles
Afeição
Cildo Meireles apresenta em 2004 na Bienal de
Liverpool um trabalho chamado Liverbeatlespool.
O trabalho é uma colagem sonora feita a partir da
banda que transformou a indústria fonográfica na
década de 1960, os Beatles, utilizando todas as can-
ções do álbum Number I, uma coletânea lançada em
2000 com 27 canções que chegaram ao número 1 das
paradas internacionais. Para executar a colagem de
Liverbeatlespool, o artista estabeleceu um eixo dos
50% da duração das canções. Levando em conta que
elas possuem durações diferentes, Hey Jude, a mais
longa, é a que primeiro toca. Depois de um certo
tempo virá a próxima, Help, e assim elas se somam
tendo o eixo dos 50% como momento de maior
cacofonia, para terminar novamente com o cele-
brado “Na Na Na, Hey Jude”. A gravação é apresen-
tada junto com uma impressão da letra da canção
The Ballad of John and Yoko e outras que ficam ali
Foto:©PatKilgore
4746
irreconhecíveis pois são retrabalhadas graficamente
reproduzindo o mesmo procedimento de sobrepo-
sição que foi feito com a trilha sonora.
O single Hey Jude é de fato um marco comercial
na história da indústria fonográfica mundial. Com
sete minutos e onze segundos, longuíssima se compa-
rada à do padrão vigente no mercado pop da época,
a canção também foi responsável por uma modifi-
cação técnica que permitiu que os discos single de 7
polegadas acomodassem tal duração.1
Era o início das
gravações em fita magnética que possibilitavam oito
canais de registro. Hey Jude, que foi primeiramente
lançada em 1968 como o lado B de Revolution, impul-
sionou a venda de 6 milhões de cópias do single em
três meses no mercado internacional.
A atitude do artista de voltar-se para o conjunto
de discos single de maior vendagem dos Beatles
reflete sua longa história com os discos, unida a
uma percepção aguçada sobre seu impacto cultural.
É quando se muda para Nova Iorque em 1969 que
o artista passa a apreciar blues, jazz e rock, gêneros
dos quais se aproxima não pela performance ao vivo,
mas por meio da gravação fonográfica. Sua relação
afetiva com tais objetos é percebida na maneira em
que coloca seus trabalhos fonográficos para comu-
nicar o que são em um nível mais primário: supor-
1 LEWINSOHN, 1987, p. 146.
tes para a escrita sonora. A partir dessa constatação,
fica mais claro qualquer posicionamento crítico
quanto a sua economia.
Mebs/Caraxia
Para Cildo Meireles, existem formas possíveis
de se construir uma escultura em um disco. Um
conteúdo exclusivamente sonoro que se comporta-
ria como escultura, que mesmo na imaterialidade
poderia exprimir uma certa tridimensionalidade,
uma certa representação de monumento,2
sendo
simultaneamente virtual e tátil. Essas são proposi-
ções que guiaram Cildo Meireles na investigação
estética do espaço virtual da gravação fonográfica
em Mebs/Caraxia:
[...] A ideia era fazer uma escultura sonora. [...] Um lado
chamava-se “mebs” por causa da fita de Moebius; o outro
lado era uma espiral, e para o título dessa espiral, eu
resolvi usar a união de duas palavras referentes a estru-
turas espiraladas: caracol e galáxia. Daí o nome “caraxia”.
[...] Mebs/Caraxia é o registro de frequências sendo alte-
radas. Durante a gravação, eu tinha um gráfico e ficava
seguindo-o. Estabelecemos um eixo e então a frequência
ficava acima ou abaixo dele. Então, nós fomos recons-
truindo aquele gráfico: a ideia era literalmente fazer gráfi-
cos sonoros. Como o gráfico lidava com a frequência e o
tempo, eu tinha dois eixos (MEIRELES, 2009, p. 249).
2 KRAUSS, 1979, p. 33.
4948
Para realizar o projeto do disco compacto
Mebs/Caraxia em 1970, Cildo Meireles conta em
depoimento que procurou o endereço de gravadoras
em uma lista telefônica, escolhendo o da Musidisc,
um selo nacional inaugurado por Nilo Sergio em
1953 no Rio de Janeiro. No estúdio foi recebido por
Ari Perdigão, diretor artístico da Musidiscs, que o
apresentou ao engenheiro de gravação, e assim, sem
muitas inquisições por parte da gravadora, o artista
pôde começar seu projeto. Perdigão, por meio da
Musidiscs, patrocinou o projeto e ainda instruiu o
artista para a confecção das capas, que foram estam-
padas com uma fotografia da Via Láctea, obtida
pelo artista com ajuda do então astrônomo chefe do
Observatório Nacional.
Para demonstrar a mudança numérica dos grá-
ficos desenhados por Cildo, foi sugerido pelo enge-
nheiro que fosse usado um oscilador de frequências,
um aparelho que gera uma onda por meio de uma
corrente elétrica. A frequência gerada pelo oscilador
pode variar em forma (senoide, quadrada, serrote,
etc.) e pode ajudar a demonstrar como se comporta
o elemento mais elementar do som: a onda mecâ-
nica. A sonoridade de um instrumento acústico,
por exemplo, é constituída por uma ampla gama de
ondas mecânicas que variam em forma e compri-
mento. A essa gama é dado o nome de “timbre”. O
que o oscilador gera com a ajuda da eletricidade é o
elemento mais puro e simples do som – uma única
frequência – eliminando a informação do timbre, a
informação que a sonoridade complexa traz sobre
os materiais que a compõe.
Cildo Meireles poderia então utilizar a mais
simples das sonoridades para compor duas for-
mas topológicas: a fita de Moebius e uma espiral.
Trabalhar a topologia em si, uma área da geometria
na qual os princípios euclidianos de tridimensiona-
lidade (altura, largura e funcionalidade) não ope-
ram, só se fez mais desafiador quando os números
representados nos gráficos desenhados por Cildo
emitiam frequências impossíveis para os limites da
masterização do disco de vinil, quebrando sete agu-
lhas de gravação durante o processo denominado de
“corte da matriz”.
Ambas as faixas do disco compacto possuem
ritmos definidos e frequências que se repetem e se
alternam em glissando (um deslize de uma frequên-
cia para outra). Mebs, mais frenética que Caraxia,
tem tons definidos que variam periodicamente:
duas linhas que transitam rapidamente de frequên-
cias muito agudas a muito graves em uma espécie
de curva estreita. Quando chegam nas frequências
altas, ficam ali por mais tempo do que nas baixas.
Outras duas linhas atrás dessas seguem suas formas,
porém se alternando entre frequências média-altas e
média-baixas e nem sempre no mesmo sentido que
5150
as linhas do primeiro plano. O ritmo de Mebs é defi-
nido por pulsos (que aparentemente não fazem parte
do gráfico da fita de Moebius) deliberadamente
colocados em uma espécie de “segundo plano”, ou
grid, para dar uma melhor sensação de espaciali-
dade. Esse segundo plano também cria um ambiente
representativo para as linhas curvas principais, como
uma tela, um papel em branco ou uma sala.
O glissando, que é um deslize contínuo de um
tom para outro, é uma estrutura musical adequada
para criar a impressão “unidimensional” em Mebs/
Caraxia, como se estivéssemos deslizando com os
ouvidos na borda única da fita de Moebius. O glis-
sando, uma forma que se desenvolveu na música
ocidental no século XX, é a mais simples das linhas,
sempre na iminência de se tornar melodia,3
e, nas
palavras do compositor Edgar Varèse, é “o desenho
de uma linha descrevendo a gradação infinita da
natureza”.4
Chamar glissandos e pulsos de escultura, porém,
é quase uma analogia do próprio artista, já que a visão
e a audição reconhecem formas e desenvolvimen-
tos no espaço de maneiras muito diferentes, como
Rodolfo Caesar percebeu ouvindo a faixa Caraxia:
3 KAHN, 1999, p. 83.
4 Ibid. p. 85.
Duas espirais que se cruzam no meio de suas trajetó-
rias, uma vinda de cima para baixo, outra no sentido
inverso. No papel o olho vê que as linhas se cruzam,
aceitando o óbvio que aqueles trajetos têm como função
a continuação após o cruzamento. No escuro o ouvido
não pensa assim. Ouvimos dois glissandi simultâneos,
um vindo do alto (agudos) e outro de baixo (graves).
Quando as duas linhas se aproximam, a convergência
é prevista, mas em seguida o cruzamento é duvidoso.
Não podemos afirmar que as linhas tenham se cruzado,
assim como não podemos jurar pelo contrário, isto é,
que cada uma volta para seu ponto inicial. Ou pode-
mos pensar ambas as soluções (CAESAR, 1987, p. 53).
Vemos aqui que uma linha como é percebida
na dimensão da visualidade assume outro compor-
tamento espacial quando traduzida para a escuta.
Por que então continuar chamando Mebs/Caraxia
de escultura? Foi uma escolha do artista, que buscou
o que é atraente para o ouvido na ideia de escultura
criando uma nova ponte cognitiva entre sua fisica-
lidade, seu apelo tátil, e a virtualidade do som gra-
vado. Para garantir que essa conexão se estabeleça na
experiência de ouvir o disco, porém, Cildo Meireles
tinha de entregar essa informação ao ouvinte. Nesse
sentido, o disco é também uma estratégia concei-
tualista, já que existe uma prerrogativa ao objeto,
uma proposta ou conceito que é informado antes
da experiência do observador/ouvinte, um acordo
verbal entre ele e o artista, mediado exclusivamente
pelo próprio trabalho.
5352
Índios e padres
Outra noção de espaço emerge em Sal Sem
Carne, de 1975, o segundo disco do artista e consi-
derado por ele um projeto de “rádio-novela”. Cildo
deixa a discussão sobre os limites da geometria que
faz em Mebs/Caraxia por meio do som eletrônico
para operar agora por meio de símbolos e narrativas
históricas que demarcam as divisões ou interseções
dos espaços do Brasil indígena e do Brasil português.
Sal Sem Carne provoca por meio do som o encontro
de diferentes territórios e suas políticas, por meio dos
discursos de indivíduos ou instituições, o que é, de
certa maneira, outra forma de manifestação da geo-
metria na complexidade sócio-histórica do Brasil.
Cildo afirma em diversas entrevistas que men-
cionam seu segundo disco que teve como símbolo
dessa oposição territorial o massacre de indígenas
no Tocantins na década de 1940 (conhecido his-
toricamente como o Massacre dos Índios Krahô),
que chegou na década de 1940 ao conhecimento
do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no Rio de
Janeiro,5
onde trabalhava o pai do artista, o indige-
nista Francisco Meireles. Segundo o depoimento de
Cildo, a denúncia de um pastor protestante havia
chegado à capital após uma série de tentativas de
5 CORREIA, 2002.
fazendeiros do Centro-Oeste em exterminar os
Krahô em disputas territoriais. Os arquivos online
do ISA, o Instituto Sócio-Ambiental, de fato relatam
que Mundico Soares, desde a década de 1930 her-
deiro de três grandes fazendas da região, é citado
como responsável pelo assassinato de vinte e seis
índios krahô e um sertanejo na década de 1940.
Cildo conta também que seu pai trabalhou na con-
versão do inquérito administrativo do conflito por
terras em um inquérito policial, assim que a tra-
gédia finalmente veio à tona no Rio de Janeiro. O
inquérito levou Mundico Soares à prisão por cinco
anos pela morte dos Krahô e do sertanejo.
O disco foi produzido pela gravadora brasileira
Tapecar (extinta em 1980, quando foi comprada
pela também nacional Som Livre) a partir do mate-
rial sonoro que Cildo coletou de diversas fontes que
considerou representativas desse conflito histórico,
inclusive no próprio Tocantins.6
Na mesma região
do conflito, Cildo gravou entrevistas com mora-
dores não índios, aos quais perguntava sobre suas
impressões sobre a vida e o sujeito indígena. É pos-
sível ouvir no LP o próprio artista perguntando aos
moradores, que respondiam com, entre outras opi-
niões, “o índio é forte”, o “índio não crê em Deus”, “o
índio come carne sem sal”. Essas falas são perpassa-
6 Segundo Melatti (1967, p. 4), a região do conflito se localiza no
município de Babaçulândia – TO.
5554
das por diversos outros discursos e sons que podem
ser manipulados pelo próprio ouvinte em seu apa-
relho de áudio, já que no disco foi usado um recurso
de mixagem que permite o controle dos níveis do
canal esquerdo e direito.
O disco é constituído por 8 canais: quatro ligados à
cultura branca-portuguesa e quatro ligados à cultura
indígena. Um dos oito canais, ligado à cultura branca,
é exatamente a contagem da rádio-relógio, que dura 50
minutos, e marca o eixo do trabalho. Há no trabalho a
gravação da festa do Divino Padre Eterno, em Trindade,
e uma gravação, que é uma espécie de terceira margem
do rio, num acampamento em São Cotolengo, que
é uma das duas ou três maiores romarias do Brasil.
Tenho guardado na memória as pessoas caminhando
em frente à casa da minha avó, nas décadas de 1950 e
60. Elas passavam rezando, caminhando de joelhos,
“pagando promessas”, carregando objetos e seguindo a
romaria. Além disso, há no disco uma entrevista com
o Zé Nem, o índio Xerente, cuja história se remete ao
Zero Cruzeiro, uma outra entrevista com um serta-
nista, que trabalhou com o meu tio Chico e Apoena
(meu primo) e finalmente uma terceira entrevista com
os índios kaiapós. O disco foi feito de uma forma onde
num dos canais há a possibilidade de se mixar/regular
o discurso dos “brancos” e dos “indígenas”. Toda a cap-
tação dos sons foi feita na Brasil: a rádio-relógio no Rio
de Janeiro e o resto em Goiás (MEIRELES, 2009, p. 259).
Escutar Sal Sem Carne é participar da cons-
trução de discursos de diversas origens, naturezas
e conflitos do Brasil: enfrentam-se e se entrecru-
zam no espaço acústico do disco canções folclóricas
sertanejas goianas, a voz da Rádio Relógio AM que
informa o horário oficial de Brasília, a voz de mora-
dores de áreas rurais da divisa de Goiás e Tocantins,
cantos indígenas, sermões de padres, crianças
índias. Desviando da fácil assimilação que se pode
fazer do estéreo e seus canais direito e esquerdo com
metáforas de contradições e até mesmo as próprias
posições políticas de esquerda e direita, Cildo traz
para a “terceira margem do rio” dois sons mais pro-
blemáticos: o depoimento de Zé Nem, índio que
deixa sua sociedade para viver na cidade, e a pai-
sagem sonora da procissão do Divino Pai Eterno. A
romaria já é em si uma ambiguidade em sua his-
tória, por ser um fenômeno religioso que emergiu
às margens das instituições oficiais do Vaticano e
que concretiza em caminhada e em som a fusão da
crença popular com o texto religioso da instituição
maior do Catolicismo.
É fundamental ter em mente que o artista
desempenhou diversas funções na reunião do
material sonoro: se apropriou de material radio-
fônico, entrevistou cidadãos tocantinenses ele
próprio como um repórter, pediu depoimentos ao
sertanista e a Zé Nem, gravou os eventos religiosos
nos procedimentos do que se denomina field-recor-
ding, gravou as canções sertanejas como na ativi-
dade da etnomusicologia. A maioria dos procedi-
5756
mentos de Sal Sem Carne, ao contrário da natureza
matemática/fonográfica de Mebs/Caraxia, se deu
no mundo, no encontro com o outro, foi feita como
um trabalho de campo.
Quando Cildo Meireles visualiza o aparelho de
áudio (vitrola, amplificador e falantes) como ferra-
menta crítica, quando confia ao ouvinte essa media-
ção possível na própria gravação de áudio, está tam-
bém criticando a eficácia do registro fonográfico.
Para expandir esse debate, Jacques Attali em
Noise: The Political Economy of Music descreve a
relação privilegiada que a gravação fonográfica
possui com o poder. Ele se manifesta pelas diver-
sas instâncias e estágios da gravação, desde dimen-
sões políticas, como a seleção do que será gravado
e reproduzido em escala de massa, como aspectos
técnicos: tecnologias e aparatos de gravação, que,
segundo Attali, são aparelhos coniventes com a
manutenção do poder ou que podem ser aplica-
dos esteticamente de forma a combatê-lo.7
É clara a
posição do artista nesse debate, seu desejo de criar
território auditivo para os que estão à margem
do que é documentado ou difundido na indústria
fonográfica e de criar o “ruído transformador” nos
territórios que se sobrepõem. Ao mesmo tempo,
Cildo consegue estabelecer distância suficiente de
7 ATTALI, 1985, p. 135
uma atitude panfletarista, quando abre sua obra
para manipulações e possibilidades de mixagem
inesperadas.
O artista buscou uma universalidade sonora
no conflito do Tocantins, símbolos que podem ser
usados para traçar um panorama mais amplo: as
interações do Brasil português e do Brasil indígena.
Sal Sem Carne posiciona o ouvinte onde estaria o
encontro desses vetores. O Massacre dos Índios
Krahô é o fato que, na dimensão da informação
oral do artista, assombra o ouvinte durante essa
experiência como um espectro; se compreende a
tragédia não ao remontar as condições específi-
cas que a tornaram possível, mas em sua inevita-
bilidade histórica. Nesse sentido, a tragédia é ao
mesmo tempo um pressuposto e um desdobra-
mento simbólico das oposições fundamentais apre-
sentadas entre o branco e o indígena por meio do
som. O ouvinte participante é posicionado em Sal
Sem Carne como uma expectativa quase utópica
de conversação entre as duas dimensões sonoras.
É ali permitido ao ouvinte vislumbrar a dificuldade
deste debate por meio da escuta e manipular com
ela sua possibilidade.
O encontro de forças e vetores continua a inte-
ressar o artista no ano seguinte ao lançamento de
Sal Sem Carne, quando desenha um novo projeto
de gravação fonográfica chamado Rio Oir. O projeto
5958
consiste no registro de field recording dos encontros
dos principais rios brasileiros, tornando o disco uma
espécie de veículo para a experiência de tais vórtices,
tão distantes da experiência de vida urbana.
O disco só seria lançado em 2011 depois de
feitas gravações na Estação Ecológica de Águas
Emendadas (DF), no Delta do Rio São Francisco
(AL), Foz do Iguaçu (PR) e no fenômeno da poro-
roca que ocorre no Rio Araguari no Amapá.
Concomitantemente à gravação de campo foi fil-
mado um documentário chamado Ouvir o Rio:
uma escultura sonora de Cildo Meireles, dirigido
por Marcela Lordy, que registra a visita do artista
aos encontros das águas e a captação profissional
de som, feita por uma equipe apoiada pelo pro-
jeto Ocupação do instituto Itaú Cultural. As cópias
limitadas do disco foram prensadas em Londres
para incluir um recurso decorativo indisponível
nas fábricas do Brasil: no próprio corpo do vinil, há
uma ilustração de uma espiral que se movimenta
quando o disco é tocado.
O lado B desse disco oferece uma interes-
sante metáfora sonora: é uma coleção de risadas de
diversas pessoas de idades variadas. Cildo Meireles
entende a risada como um “momento de extensão e
de abertura, de dispersão do ser, do ser se expandido
para fora de si.” O que as diferentes faces deste disco
recente oferecem ao ouvinte, segundo o artista, são
experiências de concentração – expressada pela
confluência dos rios, o encontro de forças – e dis-
persão, tão manifestada na risada, onde a tensão
psicológica se esvai.
61
Waltercio Caldas
O museu, a vitrola
e o regime de silêncio
O disco fonográfico é um objeto da “necessidade diá-
ria” que é a antítese exata do humano e do artístico,
uma vez que o último não pode ser repetido e ativado
quando desejado mas sim permanecer atrelado ao seu
tempo e espaço (ADORNO, 2002, p. 278).
Aqui a música não acaba ou deixa o silêncio ocupar
os ouvidos quando a agulha da vitrola toca o inter-
valo entre as canções: para começar não há música,
mas há uma forma incomum de deixá-la ausente
em um disco. Trata-se de A Entrada na Gruta de
Maquiné, faixa do disco compacto de Waltercio
Caldas. Quando se observa a face “A” desse disco,
não se veem trilhas, faixas ou intervalos – mas sim
um anel solitário gravado no vinil extremamente
liso, sem os pontilhados característicos que lhe dão
a vida musical. Somente pelo olhar já se levantam
suspeitas de que essa superfície é absolutamente
silenciosa. A desconfiança se concretiza: nada, ou
quase nada se ouve por meio do disco. A agulha que
toca o anel, decodifica o silêncio gravado.
6362
Deslizando nesse anel vazio de sons, a agulha
não percorre a espiral que convencionalmente per-
correria em qualquer disco. Sua trilha é um anel,
um loop, que dispõe somente uma pequena faixa do
tempo que a superfície do vinil compacto ofereceria
ao ouvinte, e que tragicamente anula os mecanis-
mos de abertura e levantamento do braço da vitrola.
Repetidamente, a vitrola decodifica o silêncio.
Virando para a face B desse disco que até agora
não informou outro som que não de sua própria
textura, o olhar identifica pontilhados musicais: ali
está gravada a composição eletroacústica 3 Músicas
de Sérgio Araujo, coautor do disco-objeto. Uma face
para o silêncio, a outra para a composição musical;
este é o disco Compacto Simples de 1980.
Pensando nas duas faces desse objeto, a cola-
boração entre o artista e o compositor propôs uma
troca de papéis para a capa do compacto: o lado cor-
respondente à composição de Araújo seria conce-
bido por Waltercio e vice-versa. Sérgio, para a capa
da face de Waltercio, propôs que fosse colado um
miolo de rolo de fita adesiva, aquele anel feito de
papelão, formando uma moldura para o corte circu-
lar que exibe a etiqueta do disco, e lembrando o loop
gravado no vinil. Waltercio conta que esse material é
dificilmente encontrado ainda separado da fita ade-
siva, o que o levou a alguns encontros com funcio-
nários da empresa 3M para que cedessem parte dos
rolos de papelão para a produção da capa das qua-
trocentas cópias do Compacto Simples. Caldas tam-
bém quis incorporar um objeto tridimensional para
ilustrar a face correspondente a 3 Músicas de Sérgio
Araujo. A rolha que é parte do objeto “Garrafas com
Rolha”, concebido pelo próprio artista em 1973, foi
feita na escala do furo central do disco e ali enfiada
como se o tampasse, e, na verdade, só é possível reti-
rar o disco da capa se ele for “destampado”.
A gruta que deu título à faixa de Waltercio é um
sítio geológico no município de Cordisburgo (MG).
A gruta de Maquiné chamou atenção do artista jus-
tamente pela desproporção entre sua entrada – uma
rachadura baixa e estreita na rocha – e seu interior
catedrático. Segundo Waltercio, as dimensões des-
proporcionais entre entrada e interior da gruta de
Maquiné funcionam como uma metáfora para seu
disco no sentido em que “produzem um lugar”; ou
seja, o pequeno anel gravado no vinil que corres-
ponde a um breve instante é uma espécie de porta
de entrada para outro lugar, onde o tempo não
necessariamente se comportará da mesma forma,
ou onde se tem uma experiência que quer demons-
trar alguns comportamentos do infinito. Aparece
assim um hiato entre a pequena entrada e enorme
interior da gruta, entre o anel gravado no vinil e
o som infinito que este produz, e este hiato é um
espaço em si.
6564
A Entrada seria então, pensando nas particu-
laridades da escuta de um disco de vinil, um objeto
capaz de sensibilizar o espaço já que suspende o
desenvolvimento do tempo do disco. A Entrada
poderia reconfigurar o hábito de escutar uma gra-
vação fonográfica como um registro de andamento
“para frente” ou de uma duração; ela cancela essa
sensação pedestre, a sensação de caminhar pelo
tempo. Por isso a percepção, segundo o artista, é
direcionada para o campo, o próprio espaço que
envolve o ouvinte do disco.
Mas se existe algum fator que interfere no
comportamento infinito do disco compacto, são
alguns felizes acidentes, como falhas, riscos e poeira
que registram atalhos nos quais a escuta consegue
entender o período da repetição.
A menção do jazz
São tantos os encontros históricos do jazz com
as artes visuais que se poderia escrever por meio deles
uma história da arte do século XX alternativa, descre-
vendo correspondências formais, influências e vitali-
dades sociais que colocaram artistas visuais e músicos
em um interesse de espontaneidade rítmica comum.
Antes mesmo do conhecido envolvimento dos expres-
sionistas abstratos norte-americanos com a cultura
beatnik e com a cena musical do jazz na década de
1950, Piet Mondrian – em Paris de 1927 – já tentava
criar paralelos entre seu neoplasticismo e o gênero:
Livre de convenções musicais, o jazz cria quase que
um ritmo puro, graças à intensidade de seus efeitos e
contrastes sonoros. O ritmo do jazz já lhe proporciona
uma ilusão de “abertura”, de liberdade. O neoplasti-
cismo, por outro lado, exibe um ritmo efetivamente
livre da forma, um ritmo universal. […] Mais impor-
tante que tudo, o jazz cria o ritmo aberto do bar. O jazz
aniquila. Tudo que abre executa uma ação aniquilante.
Isso liberta o ritmo da forma e de tantas outras coisas
que são forma sem ser reconhecidas como tal. Cria-se
então um refúgio para aqueles que desejam se libertar
da forma (MONDRIAN, 1927, p. 217).
Piet Mondrian só veria décadas depois, quando
se muda para Nova Iorque, o estabelecimento das
convenções do jazz e a ascensão mundial de suas
estrelas, que não mais fariam suas performances
em pequenos cabarés privados, mas dentro de um
crescente e pulsante mercado fonográfico. Por meio
dessa economia se propagaram mundialmente
talentos como Charlie Parker, Ella Fitzgerald, Duke
Ellington, Thelonious Monk e Miles Davis, e nela se
fabricaram suas lendas.
É também através da força dessas narrativas
que o jazz pode se incorporar às artes visuais, por
exemplo, pelo uso de metáforas e citações, algo que
ocorre com uma escultura particular de Waltercio
Caldas de 1998. Nela o jazz não soa: a escultura
Thelonious Monk faz a estrutura de aço inoxidável
6766
tocar a pele de coelho que lhe serve de base, pon-
tuando-a com três pequenas chapas que lembram
etiquetas com a gravação: “THELONIOUS MONK”. É
inevitável a sensação de mistério e a curiosidade que
a peça desperta; por que unir mundos tão diferen-
tes? Como é possível trazer Thelonious Monk para
tão perto de um objeto sem a ajuda de sua música?
Adolfo Montejo Navas no artigo Plástica
Sonora Brasileña considera a escultura um exemplo
do uso do “silêncio como matéria”, percebendo-a
também como uma espécie de ilustração das har-
monias dissonantes que costumam ser identificadas
com o estilo do pianista:
Não poderíamos dizer que muitas das esculturas do
artista são acentuações do silêncio? Elas não tratam sua
invisibilidade como transparência? Uma transparência
que é também processo de trabalho. [...] Nós gostaríamos
de enfatizar Thelonious Monk (1998) como uma referên-
cia emblemática nesse aspecto, onde o valor assimétrico
das notas do pianista sui generis do bebop aparece acen-
tuado em seus valores como intervalos, como se a música
fosse espaço em movimento (NAVAS, 2004, p. 65).
Falta somente compreender o papel da indústria
fonográfica para que essas dissonâncias do pianista
soem com tanta força na memória do observador:
o nome do jazzista, de tão repetido e cultuado, vira
uma espécie de vetor dentro da escultura de Caldas.
O artista, no entanto, afirma tentar se desviar
do recurso da metáfora em uma espécie de “missão
impossível” que quer revelar objetos no “momento
antes de seus nomes”. Thelonious Monk, o músico,
poderia desempenhar na obra de Waltercio um
papel anterior ao de seu nome somente se trans-
formado em vetor ou em uma função derivada de
suas sonoridades. Ficará assim entre a abstração e a
representação, entre silêncio e discurso, se for trans-
formado em uma espécie de fonema.1
Thelonious
Monk, a escultura, desvia da metáfora na medida
em que deseja o descolamento entre músico e
música, e consegue demonstrar uma forma simples
para transfigurar uma lenda do jazz em vetor.
O espectador que observa o objeto, já conhe-
cendo a música de Thelonious Monk, é convidado
por esse objeto a remexer memórias perceptivas
mais anteriores aos nomes, memórias incorporadas,
físicas e raramente silenciosas.
A estranha evidência do silêncio
Navas não foi o primeiro ou único crítico a res-
saltar a qualidade silenciosadosobjetosdeWaltercio
Caldas. Aliás, silêncio e vazio são dimensões recor-
1 WEISS, 2008, trata justamente das operações miméticas entre lin-
guagem e sonoridade. Entre diversos questionamentos do artigo
se destaca a hipótese de que a diferença entre mímese e abstração
é uma aporia estética comum a todas as artes, e por meio dessa
diferença aconteceriam transposições formais entre diferentes
formas de arte, como por exemplo, artes plásticas e música.
6968
rentes em diversos textos de diversos autores da
obra do artista. Por que é necessário reafirmar a
natureza silenciosa dos objetos, natureza comum,
pode-se dizer, à maioria dos objetos de arte? Qual é
o valor que está em jogo e por que o silêncio de suas
esculturas é especial na visão que os críticos cons-
troem para a produção de Waltercio Caldas?
Compreender essas metáforas e a que exata-
mente servem implica considerar o silêncio como
situação utópica, algo que o ouvido humano a rigor
nunca vivencia, uma experiência perceptiva que
pode ser somente imaginada ou ponderada:
Pois, quando, depois de convencer a si mesmo por igno-
rância que o som tem um claramente definido oposto, o
silêncio, desde que a duração seja a única característica
do som que pode ser mensurável em termos de silêncio,
pois qualquer estrutura válida envolvendo sons e silên-
cios deve basear-se, não da forma ocidentalmente tradi-
cional, sobre a frequência, mas justamente sobre a dura-
ção, a pessoa entra numa câmara anecoica, tão silenciosa
quanto tecnologicamente possível em 1951, para desco-
brir que se ouve dois sons de nossa própria fabricação
não-intencional (a operação sistemática dos nervos, a
circulação do sangue), a situação que este claramente se
encontra não é objetiva (silêncio-som), mas sim subje-
tiva (sons apenas), os intencionais e os outros (chamados
de “silêncio”) não intencionais (CAGE, 1961, p. 12).
Cage,emsuaafirmação(queédefatoumrelato,
pois de fato entrou em uma câmara anecoica2
),
2 CAGE, 1961, p. 167.
apresenta uma noção de silêncio dependente de
sua condição subjetiva, pois na vida existe somente
uma condição possível: sons apenas. O “ruído” seria
o conjunto de ruídos intencionais e indesejados. O
silêncio seria construído a partir de sons não inten-
cionais, reforçando assim sua condição “impura”,
dentro dessa faixa de tolerância perceptiva aos sons
acidentais.
Mas abraçando o caráter utópico e não a impu-
reza do silêncio, muitas decisões curatoriais foram
tomadas e poderia-se até dizer que muitas políticas
públicas e culturais foram constituídas no século
XX. O museu é um espaço que tradicionalmente
privilegia o silêncio sobre o ruído. Um exemplo efi-
caz para a defesa do silêncio como forma de pro-
teger a experiência ótica está no texto “A Estranha
Evidência do Silêncio”, de Paulo Sérgio Duarte para
o catálogo de Waltercio Caldas publicado nos anos
2000, discutindo sobre essa qualidade nas salas de
exposição:
Na obra de Waltercio Caldas, a reconstrução do pra-
zer do olhar passa, por isso mesmo, pela integração do
silêncio e pela forma enigmática. […] Antigamente,
por princípio, toda obra de arte se calava. Mas será
que precisamos lembrar certas obras cinéticas, seus
motores e seus mecanismos, para saber que o ruído do
mundo, há muito, invadiu de fato as salas de exposição?
Faz mais barulho, ainda, a invasão brutal dos ícones
da sociedade de consumo, incorporados cinicamente
7170
ou mesmo tratados criticamente.[…] Por isso, a obra
de Waltercio restaura o direito ao silêncio. Tal como o
vazio expressivo, esse silêncio – que era comum a toda
obra de arte – se estabelece como um mais-silêncio.
Quando se quebra e sua fala se manifesta, ela é baixa,
no máximo sussurra a solidão, sem lamento ou melan-
colia, como nas naturezas-mortas de Morandi. Antes
satisfeito com essa condição de existência, o silên-
cio, ou a fala baixa, se apresenta como um “estado de
imagem”, para usar uma expressão do próprio artista.
Conquistado ao longo do processo de construção da
obra, o silêncio torna-se tanto mais denso quanto mais
o trabalho se vai despregando de qualquer retórico
embutida, quanto mais se torna independente de refe-
rências externas e impulsiona uma inteligência pura-
mente ótica (DUARTE, 2000, p. 85).
O silêncio que descreve Paulo Sérgio Duarte é a
consequência de um desenvolvimento formal bem-
sucedido(“osilênciotorna-setantomaisdensoquanto
mais o trabalho se vai despregando de qualquer retó-
rico embutida, quanto mais se torna independente
de referências externas e impulsiona uma inteligên-
cia puramente ótica”). Está essencialmente ligado ao
“prazer de olhar”, além de servir muitas vezes de ana-
logia para o vazio (“Tal como o vazio expressivo, esse
silêncio...”). Tal silêncio é a condição perceptiva para
a arte abstrata que emerge no Modernismo, e que se
contrapõe aos atos discursivos que eram possíveis no
espaço tridimensional da pintura representativa.3
3 RANCIÈRE, 2001, p. 16.
O silêncio como analogia do vazio reaparece
no texto A Consciência do Intervalo, de Agnaldo
Farias, aqui, mais próximo à ideia de pausa musical:
É uma profunda consciência das possibilidades do
intervalo entre as coisas o aspecto diferencial da obra
de Waltercio Caldas. Pode-se chamá-lo de pausa, silên-
cio, oco, parênteses, vazio. Cada objeto serve de ponto,
onde o olho se atraca para se lançar na prospecção do
invisível e voltar com novas notícias do que parece ser a
expansão do raciocínio escultórico (FARIAS, 1996, p. 76).
O silêncio-pausa de Farias, assim como fez
Ilse Kuijken (“Essas esculturas estão em seu espaço
como o ar na música”)4
encontra seu lugar numa
espécie de ritmo criado pelo raciocínio formal de
Caldas. O ritmo escultórico do artista foi também
ouvido por Paulo Venâncio Filho:
[...] Simples como o silêncio mais baixo onde se ouve
os infrassons do silêncio. E o silêncio vem de todos os
lados em precisos ataques de sintonia. Um silêncio de
aço, simplesmente. Desta forma lacunar é sólida na sua
frequência mais extrema. Pois só inúmeras camadas
de vazio podem auto-sustentar uma desocupação do
total espaço (Jorge Oteiza) para desvelar e oferecer o
espaço. Ele então se faz vivo e pulsante, em síncopes
desritmadas e articuladas. Fica a expectativa de algo
que demora, uma espera, suspense natural (VENÂNCIO
FILHO, 2008, p. 49).
4 In: KUIJKEN, 1992.
7372
Paulo Venâncio Filho cria uma possibilidade
interessante para o silêncio, um silêncio cujos
“infrassons” podem ser ouvidos em “ataques de
sintonia”, novamente dentro da alusão ao vazio,
mas que aqui assume um caráter impuro e musi-
cal, ainda que reafirme o controle do artista sobre a
matéria silenciosa com a precisão que se assemelha
à leitura de uma partitura.
Uma metáfora mais ruidosa foi feita pelo crí-
tico Lorenzo Mammi:
A ciência acústica conhece um fenômeno chamado
som de combinação, ou terceiro som. Se duas notas
de alturas diferentes, mas relativamente próximas, são
tocadas simultaneamente, suas frequências entram em
choque e produzem uma terceira nota claramente audí-
vel, equivalente à diferença entre elas. Embora tenha
sido descoberto no século XVIII, até hoje não se sabe
se o terceiro som é uma realidade física ou uma reação
neurológica. Por analogia, poderíamos pensar nos tra-
balhos de Waltercio Caldas como objetos de combina-
ção, ou terceiros objetos. Neles há grande proximidade,
e portanto choque, entre projeto da obra e sua pre-
sença física.[…] Como duas oscilações próximas mas
diferentes que entram em fase, pensamento e matéria
criam assim uma perturbação, uma vibração secundá-
ria, que não pode ser reconduzida, embora seja, com
toda evidência, um reflexo delas. A substância do tra-
balho de Waltercio está justamente nessa vibração, algo
que não é corpo nem ideia, algo que não enxergamos
na obra, mas que podemos intuir através de, ou graças
a ela. Onde está a obra, nesse caso? Não apostaríamos
em sua realidade física, tampouco em seu caráter de
mera ilusão dos sentidos (MAMMI, 1995, s.n.).
Como uma espécie de substrato, o fenômeno do
som de combinação é uma metáfora para o produto
do choque entre matéria e pensamento, segundo
Mammi. Ainda que boa parte de suas considerações
possa também ser aplicada a A Entrada na Gruta de
Maquiné, sua tentativa de materializar ou propagar o
silêncio e colocar o ouvinte em direto contato com a
“substância”, não existem menções à obra.
Ruído transformador
Parece que existe uma tradição de o artista fazer disco
assim como ele realiza também filmes. Mas a questão
não é a história do disco, mas do processo industrial. O
artista utiliza-se do disco como uma das possibilidades
da linguagem. No meu caso, houve também a questão
da montagem industrial, quando visitei uma linha de
produção. O meu interesse foi criar uma ironia. A pro-
dução industrial expele quantidade. Ao fazer esse disco
minha ideia era a de provocar, em relação à indústria,
sua própria dúvida. Como se a indústria se perguntasse
sobre si mesma. A questão desse disco não é a de um
artista plástico fazendo-o. É também a de um músico
que realiza um trabalho de arte. O disco trabalha nessa
tensão. A questão de ouvir ou de ver. Ele pretende rom-
per com os limites do visível e do audível (Waltercio
Caldas em entrevista In: COUTINHO, 1981, s.n.).
7574
Na entrevista que deu a Wilson Coutinho,
na matéria publicada em 1982 no Jornal do Brasil,
Waltercio Caldas traz à luz outro aspecto de seu
disco compacto, além do silêncio de sua mídia e da
forma pouco convencional de sua gravação: sua ori-
gem industrial. Como veremos em Mebs/Caraxia e
Sal Sem Carne de Cildo Meireles, o artista posiciona-
se criticamente dentro do ambiente de produção de
seu objeto sonoro, e tenta por meio dele modificá-lo.
Coutinho narra que foi preciso reprogramar o
sistema, transformá-lo, para que o compacto fosse
produzido.5
O aparato dessa indústria, ainda que
para uma pequena tiragem, teve de se converter para
acomodar uma ideia externa e que pouco segue as
logísticas estabelecidas então, na produção e venda
da música gravada. Isso foi preciso porque as máqui-
nas que gravam os discos de vinil convencionais o
fazem em forma de espiral, e não de anéis; assim,
foi preciso adaptar a engenharia de sincronia entre
a base rotatória e a agulha de gravação que cria os
pontilhados e sulcos na superfície do disco matriz.
Não estaria Waltercio, assim, em sua A Entrada
da Gruta de Maquiné, além do silêncio, provocando
uma espécie de ruído dentro da indústria? Não
seria o disco a intencionalidade que rompe o que é
comum dentro da indústria fonográfica? Uma espé-
cie de ruído institucional:
5 COUTINHO, 1981, s.n.
Uma rede pode ser destruída por ruídos que a atacam e
a transformam, se os códigos estabelecidos forem inca-
pazes de os normalizar e reprimir. Ainda que a nova
ordem não esteja contida na estrutura da antiga, ela
não é um produto do acaso. Ela é criada pela substitui-
ção de antigas diferenças por novas. O ruído é a fonte
dessas mutações nos códigos estruturais. A despeito da
morte que ele contém, o ruído traz em si uma ordem,
traz em si informação nova. […] A presença de ruído
faz sentido, traz significado. Faz possível a criação de
uma nova ordem em outro nível de organização, de um
novo código em outra rede (ATTALI, 1985, p. 33).
Para Attali, o regime da música gravada – as
políticas da indústria fonográfica – encontrou, em
sua história, meios de silenciar o ruído transforma-
dor e neutralizar sua ameaça em diferentes instân-
cias. Em sua dimensão pouco mutável, a gravação
elimina o risco da performance e da incerteza do
erro – o ruído. Na sua distribuição e presença na
sociedade, a música gravada silencia pela homo-
geneização auditiva que promove. Sua infiltra-
ção na vida pública e privada é, para Attali, “um
monólogo da instituição”, pois é possível somente
por meio de uma centralização de poder que sele-
ciona e manipula o que será gravado, produzido
em escala massiva e reproduzido à exaustão. O
ruído poderia ser, entre tantas outras coisas, o que
escapa a esse “mundo administrado”. Não faltam
exemplos na atualidade do que pode se comportar
7776
como ruído transformador das estruturas de poder,
sendo a pirataria e a produção independente os
mais evidentes.
Dentro dessa noção do ruído institucional, a
ideia de Waltercio se torna ruído – um distúrbio da
ordem – no momento em que deve ser concretizada
por meios pouco convencionais, em um ambiente
de rígida organização. O aparato industrial, ideal-
mente a salvo de erros e desvios em suas inúmeras
padronizações de formato, contamina-se – ainda
que de maneira temporária – com o ruído silencioso
de Waltercio Caldas, que o obriga à reprogramação.
Apesar de Attali afirmar que o silenciamento
almejado pela indústria fonográfica só pode ser
totalmente compreendido se levarmos em conta a
cadeia do mercado fonográfico inteira, que passa
pela gravação, sua distribuição, compra e inserção
no mundo público e privado, A Entrada na Gruta
de Maquiné, na pequena abertura que se formou
na indústria (em seu cerne, seu aparato), quis colo-
car em dúvida sua ilusão de segunda natureza. Nas
palavras de Caldas: “O artista trabalha sobre essa
[segunda] natureza. Mas coloca-a em dúvida. Esse
processo não é representacional. A indústria tem
um vínculo com uma suposta veracidade. Ele se
pretende se fundar como verdade.” A forma inco-
mum de A Entrada na Gruta de Maquiné deixa visí-
vel que os padrões da indústria são legitimados por
decisões políticas, técnicas e econômicas que ten-
dem a priorizar as estéticas que se alinham a seus
esquemas de lucro e eficiência. Propagando o silên-
cio pelo vinil, será possível escutar ao redor e no
barulho do mundo tudo o que não se compreende
nessa cadeia.
79
Chelpa Ferro
A abertura democrática
Uma nova e grave crise se alastra no mercado
fonográfico brasileiro no início da década de 1980
como consequência da instabilidade econômica que
provocou índices de inflação de até 100% ao ano.
As consequências foram devastadoras para as gra-
vadoras nacionais e internacionais, que sofreram
fusões, falências (como a Ariola, que foi comprada
em 1981 pela Polygram)1
e acabaram por reformu-
lar suas estratégias de mercado, redirecionando
definitivamente a atuação cultural da indústria
fonográfica no Brasil: se antes já era questionável a
maneira pela qual a gravação fonográfica dava visi-
bilidade a uma determinada cultura musical, uma
vez que qualquer manifestação artística deveria se
adaptar aos padrões de mercado ou já teria estes no
horizonte durante o processo criativo, a partir dos
anos 1980, este pequeno grau de experimentação se
1 VICENTE, 2002.
8180
extingue.2
As decisões, como o catálogo de artistas,
lançamento de novos artistas ou de novos álbuns de
músicos consagrados e outras produções, passariam
a ser feitas pelo departamento comercial e não mais
o artístico, segundo Ana Maria Bahiana no artigo
d’O Globo de 1982, O tempos mudaram e ‘acabou a
brincadeira’. Disco agora é negócio para profissionais.
O maior nível de racionalização e conser-
vadorismo das gravadoras frente ao pessimismo
da crise fez com que um volume muito maior de
lançamentos internacionais circulasse no país3
ao
mesmo tempo em que haveria cortes brutais de até
75% do elenco de artistas nacionais.4
Esse processo
também acelerou a ascensão das bandas do BRock,
o rock brasileiro, cujos principais representantes
eram bandas como Paralamas do Sucesso, Blitz, Kid
Abelha, Marina Lima, Titãs, Legião Urbana, Lobão
e Barão Vermelho, que, segundo André Midani,
foram um fator determinante para a superação da
queda de vendas nessa década. A recuperação efe-
tiva da indústria fonográfica só se daria em 1986,
quando atingiu o maior nível de produção até então.
Com a abertura política da década de 1980, o
cerceamento repressor do espaço público se atenua,
2 MIDANI, 2002, p. 216.
3 MIDANI, 2008, p. 201.
4 VICENTE, 2002.
possibilitando a realização de eventos que promo-
veriam tais bandas que pouco compartilhavam das
ideias tropicalistas das duas décadas anteriores.
Nestas ocasiões, intenso o encontro de
artistas de diversos campos como o teatro, a música,
a poesia, a dança e as artes visuais em eventos como
o Circo Voador no verão de 1982, realizado na praia
do Arpoador pelo produtor Perfeito Fortuna.
A atitude desta nova geração de artistas – em
especial a de artistas visuais – não mais refletia a
politização do discurso da antiarte dos artistas da
década de 1970, restaurando-se a atitude artística
de “voltar-se para o interior”5
para fortalecer nova-
mente o papel do artista individual que não reco-
nhece como um dever o desenvolvimento de deba-
tes reconhecidos pela história da arte de vanguarda
brasileira.6
Essas serão trilhas sonoras que alimentaram o
que Heloisa Buarque de Hollanda chama de “des-
montagem da ditadura”; o tom era libertário, pro-
punha-se remontar o indivíduo. A juventude dessa
nova década propõe viver a democracia em um
espírito atualizado do desbunde7
da contracultura
da década anterior: esse agora perpassaria os bens
5 POINSET apud MORAIS, 1984, p. 224.
6 GUINLE, 1984, p. 233.
7 “Deriva da circulação do modelo hippie na cultura jovem dos
grandes centros urbanos, sendo relacionado ao consumo de
8382
de consumo, o pop, a moda, a despedida do impe-
rativo de criar utopias e glórias póstumas na arte8
e
na música popular.
É nessa conjuntura em que dois dos membros
de Chelpa Ferro, Barrão e Luiz Zerbini, iniciam car-
reira no circuito de artes visuais no Rio de Janeiro.
A cidade nessa década também acabou propiciando
encontros de artistas de diversos campos como o
teatro, a música, a dança e as artes visuais com even-
tos como o Circo Voador no verão de 1982, reali-
zado na praia do Arpoador pelo produtor Perfeito
Fortuna. Nesse lugar, os músicos do novo rock bra-
sileiro, que pouco tinham das ideias tropicalistas
das duas décadas anteriores, encontravam a geração
80 de artistas visuais, atores de novas companhias
de teatro, como Asdrúbal Trouxe o Trombone, e
escritores como Fausto Fawcett e Ricardo Chacal.
Chacal foi o responsável por reunir Chelpa
Ferro pela primeira vez como “banda” em 1995 –
não em um contexto de artes ou de música, mas
para um evento de poesia. Longe da galeria e do
drogas, à crença mística orientalista e ao ideal do ‘pé na estrada’”
(COELHO, 2010, p. 217).
8 MORAIS, 1984, p. 226. Algumas canções de sucesso da época
sugerem esse espírito: “Eu vejo a vida mais clara e farta” (LULU
SANTOS, Tempos Modernos, 1984); “Meus heróis morreram de
overdose” (CAZUZA, Ideologia, 1988); “Mas Vital comprou a
moto e passou a se sentir total” (PARALAMAS DO SUCESSO, Vital e
Sua Moto, 1984).
museu, no palco do teatro Sérgio Porto, Barrão,
Zerbini, Sergio Mekler e Chico Neves fizeram sua
primeira performance no CEP 20.000, o Centro de
Experimentação Poética, um dos eventos de poesia
(ou com a desculpa da poesia para se expandir para
praticamente todas as linguagens artísticas) mais
conhecidos e celebrados pela comunidade artís-
tica do Rio de Janeiro. O ambiente experimental e
propositivo do CEP 20.000 acolheu as vontades do
grupo de fazer o que estivessem “a fim de fazer [...],
sem preocupação que isso tenha coerência com o
que fizemos semana passada.”9
Barrão trabalha no início de sua carreira com
esculturas feitas de máquinas acopladas; Zerbini,
paulista que muda-se para o Rio na década de 1980,
se estabelece como artista trabalhando principal-
mente com a pintura; Sérgio Mekler é editor de
cinema e TV; e Chico Neves10
é produtor musical,
iniciando em 1978 uma carreira que teve produções
de sucesso no mercado da música popular brasi-
leira, como álbuns dos Paralamas do Sucesso, Jorge
Mautner, Skank e Arnaldo Antunes.
Como apontaram Hermano Vianna e Moacir
dos Anjos, todos os membros do Chelpa Ferro
lidam com procedimentos de fragmentação, edição
9 Depoimento de Barrão no documentário Chelpa Ferro (cf.
NADER, 2009).
10 Chico Neves deixou o grupo em 2001.
Artistas visuais gravam discos no Brasil
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  • 1. Vivian Caccuri coleção através OQUEFAÇOÉMÚSICAVivianCaccuri Este livro mostra como artistas visuais tor- naram tangível e manipulável a imagem dos mitos da música. As narrativas construídas pela indústria fonográfica motivaram boa parte das obras aqui citadas e fazem parte da trama crítica de diversos desses trabalhos, demonstrando como tanto o ídolo quanto o processo da gravação fonográfica podem ser reapropriados em projetos que propõe uma vida diferente daquela à qual foram primeira- mente destinados. o que faço é música Como artistas visuais começaram a gravar discos no Brasil
  • 2.
  • 3. o que faço é música
  • 4. Vivian Caccuri o que faço é música Como artistas visuais começaram a gravar discos no Brasil coleção através O primeiro passo da coleção ATRAVÉS é divulgar e refletir a produção acadêmica e torná-la disponível para o leitor. Romper a barreira das estantes das universidades abarrotadas de teses e dissertações, que possuem poucas oportunidades de serem publicadas. Permitir que a pesquisa acadêmica, através de uma narrativa ensaística, clara e precisa, chegue ao leitor e não se torne, portanto, uma produção quase que confinada ao esquecimento. A coleção tem o compromisso com a interdisciplinaridade, e de provocar reflexões e permitir diálogos entre diferentes campos de saber tendo a cultura como meio de discussão. Interessa-nos atravessar tempos e lugares, disciplinas e meios, como forma de entender o presente. A coleção ATRAVÉS também se constitui em um campo de experimentações nos temas e estudos que serão abordados, assim como permitirá a ampliação de novos autores para a literatura crítica no país. Felipe Scovino
  • 5. ©2013 Vivian Caccuri Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. Coordenação da coleção Felipe Scovino Coordenação editorial Isadora Travassos Produção editorial Cristina Parga Eduardo Süssekind Rodrigo Fontoura Sofia Soter Victoria Rabello Ilustração Chiara 2013 Viveiros de Castro Editora Ltda. Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320 – Ipanema Rio de Janeiro-rj cep 22410-902 Tel. (21) 2540-0076 | editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br cip-brasil. catalogação-na-fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj c125d Caccuri, Vivian O que faço é música : como artistas visuais começaram a gravar discos no Brasil / Vivian Caccuri. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2013. (Coleção Através) isbn 978-85-421-0146-1 1. Registros sonoros - Indústria - Brasil - História. 2. Música popular - Brasil. 3. Música - Análise, apreciação. I. Título. II. Série. 13-02709 cdd: 781.17 cdu: 681.84(81) Sumário Introdução 9 Ironias e reverências: artes visuais e o imaginário da música popular 17 Um breve histórico da economia do disco no Brasil 27 Cildo Meireles 45 Afeição 45 Mebs/Caraxia 47 Índios e padres 52 Waltercio Caldas O museu, a vitrola e o regime de silêncio 61 A menção do jazz 64 A estranha evidência do silêncio 67 Ruído transformador 73 Chelpa Ferro A abertura democrática 79 Do estúdio à galeria 84 O aparato do rock 87 Gravando 90 O LP contemporâneo 95 Ausência 96 Bibliografia 99 Todos os esforços foram feitos para reconhecer os direitos morais e autorais neste livro. A editora agradece qualquer informação relativa à autoria, titularidade e/ou outros dados que estejam incompletos nesta edição, e se compromete a incluí-los nas futuras reimpressões.
  • 6. 9 Introdução Mesmo para quem não está familiarizado com as téc- nicas e procedimentos da gravação de um disco de vinil, não é difícil imaginar que existam padroniza- ções necessárias para que sejam lançados e distribuí- dos no mercado como produtos. Padrões que apro- ximam os mais diversos artistas, de Orlando Dias a Os Mutantes: seus discos, após a gravação das trilhas, passam por um conjunto de processos semelhantes. Existem limites e equilíbrios de frequências sonoras necessários para que os sulcos que serão gravados no vinil não se interpolem ou para que os dados de um CD não excedam a faixa legível pelo equipamento – o que faria com que a gravação tivesse inúmeros pro- blemas em sua execução. A engenharia de som e a linha de produção em série, ainda que atendendo a diferentes necessidades técnicas, são para todos os artistas. Para falar criticamente desses processos em 2013 é fundamental contextualizar a mídia analó- gica no momento atual, onde a circulação da música independe das mídias físicas, adquirindo por vezes
  • 7. 1110 o comportamento de vírus de vida curtíssima. A mídia analógica ganha hoje uma “estranha pre- sença”, uma imposição tátil. Assim, pensar o disco de vinil e a gravação fonográfica é também descre- ver a ritualização de seu uso e o modo como o valor da sua materialidade se revelou melhor quando a mídia analógica deixou de ser tão presente na vida das pessoas. Quando o disco vira objeto de aprecia- dor, passa a existir uma distância sobretudo econô- mica que possibilita outras leituras. Adorno, em “A forma do disco” (“Die Form der Schallplatte”), já havia pensado no papel do disco de vinil na vida privada e no significado da posse de uma coleção musical: Não é no tocar do gramofone como substituição da música ao vivo, mas na gravação fonográfica como objeto que reside seu significado estético e potencial. Como um produto artístico da decadência, ele é o primeiro meio de apresentação musical que pode ser possuído como coisa. Não como pinturas a óleo, que olham para os vivos de cima das paredes. Assim como essas mal cabem em um apartamento hoje, não exis- tem de fato gravações fonográficas de grande formato. Em vez disso, discos são possuídos como fotografias: o século XIX teve boas razões para inventar a grava- ção fonográfica para ficar ao lado de álbuns de selos e de fotografias, todos eles formando uma flora de vida artificial que sobrevive em espaços diminutos e ficam assim prontos para remontar toda lembrança que esta- ria fatalmente fragmentada na pressa da vida mundana (ADORNO, 2002, p. 177). A decadência cultural à qual Adorno se refere muito se relaciona na distância entre artista e público que a gravação fonográfica impõe. Em sua visão, um registro suficientemente “grande” – no sentido físico e moral do termo – não poderia fazer o ouvinte acre- ditar que a experiência da música pudesse ser revi- vida a cada execução do disco. O disco, para Adorno, é uma música aprisionada e descolada de seu poder transformador, cabendo às gravadoras suavizar esse seu defeito por meio da criação do sistema de estrelato e idolatria, um sistema que teria o poder de humanizar falsamente a gravação fonográfica. No esquema do estrelato, inventado pela indústria fonográfica, os ídolos são os que vivem, os ídolos são os que se transformam, se envolvem em polêmicas, realizam grandes obras. Como afirma Jacques Attali (Noise: The Political Economy of Music) os discos são meios pelos quais percebemos passivamente as trans- formações dos mitos da música. Este livro mostra como artistas visuais tornaram tangível e manipulável a imagem dos mitos da música. As narrativas construídas pela indústria fonográfica motivaram boa parte das obras aqui citadas e fazem parte da trama crítica de diversos desses trabalhos, demonstrando como tanto o ídolo quanto o processo da gravação fonográfica podem ser reapropriados em projetos que propõem uma vida diferente daquela à qual foram primeiramente destinados.
  • 8. 1312 Por outro lado, a posição radicalizada de Adorno contra a coisificação da produção cultu- ral serve a este livro para examinar como a mídia fonográfica é inseparável de sua vocação da escrita e como essa natureza a torna um instrumento de produção estética em si. Esse ponto de vista é importante também para entender como a gravação fonográfica deixa ao longo do século XX seu papel original de registro – predominantemente antropo- lógico – do ao vivo. A gravação fonográfica deixa de servir somente ao field recording para servir a uma economia que transforma música em produto. O colecionismo examinado e condenado por Adorno é um fenômeno social importante para compreender a construção da afetividade em torno da gravação fonográfica que só foi possível porque a indústria da música patrocinou – com a ajuda da imprensa radiofônica e televisiva – um aprendizado perceptivo para a apreciação da música gravada e estabeleceu parâmetros de gosto para essa aprecia- ção dentro dos nichos desse mercado consumidor. A afetividade pelo disco só seria possível se esses objetos de fato adquirissem vida própria na socie- dade, tornando-se – e aqui cito Waltercio Caldas – uma segunda natureza, coisas inquestionáveis por meio das quais conseguiríamos construir ou refor- çar relações sociais ou facilitar o contato com des- conhecidos (quantas amizades e amores não nasce- ram por causa de bandas e discos?). Os artistas aqui comentados criticam o apego fanático e acrítico pelo disco ao indagarem a razão de ser desse objeto, e o fazem antes de o utilizarem como um suporte de uma escrita específica. Se levarmos em conta a decadência na qual a economia das mídias físicas hoje se encontra, é irô- nico demais certos artistas e bandas hoje optarem por lançar seus álbuns no velho vinil. A nostalgia é disfar- çada de “valor do objeto”, a possibilidade da arte pre- sente na capa com dimensões maiores, a aclamada qualidade do áudio e o rito que envolve sua escuta. Essa atitude vintage tão condenada em Retromania,1 de Simon Reynolds (um livro todo dedicado a examinar como o vintage desencoraja a criação de novos estilos e a disseminação das ino- vações musicais mais recentes), deixa ainda mais interessante o fato de que os artistas visuais experi- mentaram com as ferramentas da gravação fonográ- fica em vinil enquanto esta indústria ainda estava em seu apogeu. De certa forma, esses artistas visuais já demonstravam como o disco seria compreendido após o fim de seu reinado como mídia sonora prin- cipal: como um objeto-fetiche. Os artistas visuais brasileiros que experimen- taram com as ferramentas da gravação fonográfica, 1 Cf. Simon Reynolds, Retromania: Pop Culture’s Addiction to its own Past, London, Faber&Faber, 2011.
  • 9. 1514 como Cildo Meireles, Waltercio Caldas e Chelpa Ferro, distorcem propositalmente alguns dos proce- dimentos padrões desse complexo, revelando seus limites e estratégias mercadológicas. Alguns deles não agem exclusivamente sobre a forma e função do disco de vinil e do CD, interessando-se também na interação desses formatos com o conteúdo que suportam: os ídolos e mitos da música gerados na construção de narrativas que integram sonoridades poderosas e imagens sedutoras. A grave situação política da década de 1960 fez com que artistas visuais e músicos se aproximassem ideológica e esteticamente em ações conjuntas, como aconteceu com Hélio Oiticica e os tropicalistas baia- nos.Dessesencontros,gerou-seumimagináriosonoro e performático no qual artistas visuais propunham novas formas de recepção dessa produção musical, em rebeldia às formas predominantes de colecionismo, culto à imagem e idolatria de mitos. A identificação com essas ações transformadoras de como a música poderia ser recebida/distribuída motivou alguns artis- tas da geração seguinte – já naturalmente predispostos a lidar e a apreciar a sonoridade e os produtos dessa indústria – a atuar no estúdio fonográfico efetiva- mente, sob uma estrutura de produção propícia, que então adquirira um custo relativamente baixo. Além de examinar as relações, celebrações e críticas que os artistas citados fizeram com os íco- nes da indústria fonográfica, este livro descreve como foram executadas essas experimentações em estúdio, em uma contribuição para a compreensão dos trabalhos além da execução de sua sonoridade. Certos contextos históricos e condições técnicas que levaram os artistas a experimentar com a grava- ção fonográfica podem influenciar diretamente na natureza da sonoridade que irão produzir e como ela deve ser recebida pelo ouvinte. Este livro é uma edição ampliada de parte dos capítulos da dissertação de mestrado Ouvindo as Artes Visuais: sonoridades de Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Chelpa Ferro e Waltercio Caldas, escrita na Universidade de Princeton, defendida na Escola de Música da UFRJ e vencedora do Prêmio Funarte de Produção Critica em Música 2013. Durante a pes- quisa, houve grande dificuldade em encontrar os dis- cos em arquivos públicos destinados às artes visuais no Rio de Janeiro. Ainda que houvesse livros men- cionando as obras em instituições como a Funarte (RJ), o MAM (RJ) e a Biblioteca Nacional, os discos em si não constavam nos arquivos até o início de 2012. Assim, o acesso a esses materiais aconteceu em con- tato direto com os artistas ou por meio de colabora- dores – como Rodolfo Caesar, orientador da minha dissertação, que também me apresentou diversas das obras que examino aqui; Hermano Vianna, que me cedeu uma cópia do Compacto Simples de Waltercio
  • 10. 1716 Caldas, e o próprio Chelpa Ferro, que além de seus próprios discos forneceu acesso a uma cópia de Mebs/Caráxia, de Cildo Meireles. Por fim, realizei uma pesquisa posterior no arquivo do MoMA em Nova Iorque, onde encontrei as duas gravações em vinil existentes de Cildo Meireles. O artista também me presenteou com uma cópia de seu disco mais recente, Rio Oir, feito como um projeto especial do Itaú Cultural em 2011. Nessas aproximações, tive a oportunidade de colher depoimentos dos artistas e também de ter conversas sobretudo informais sobre música. Nessas trocas, discutimos sobre o nosso repertório musical favorito e resgatamos algumas experiências de shows e apresentações, eventos nos quais pode- mos atribuir uma vida física real aos artistas com quem até então só nos relacionávamos pela escrita sonora da mídia do disco. Dessa maneira, as descrições críticas dos discos de artistas presentes nesse livro serão ilustradas com acontecimentos históricos que, com a objetividade que esse formato impõe, irão ampliar a compreen- são das experimentações ainda pouco conhecidas. Ironias e reverências: artes visuais e o imaginário da música popular Desde a década de 1960 existem no Brasil artistas que propõem incorporar a sonoridade e fazer refe- rências a grandes ícones da música popular sob pos- turas que variam da celebração à critica. Seja qual for a conotação do discurso a que tais apropriações dão forma, eles se sustentam na divisão econômica das artes (estamos aqui, artistas visuais, trabalhando sobre o que está ali, na música popular) e refletem um conjunto de dinâmicas culturais das grandes cidades que provocam encontros entre artistas de diferentes campos artísticos, seja na forma na qual unem manifestações culturais de regiões apartadas, seja nas circunstâncias festivas, especiais e metropo- litanas nas quais surgem. Uma dessas livres incorporações dos ícones da indústria fonográfica aconteceu na cidade de São Paulo na década de 1960. Na Rex Gallery & Sons – uma galeria independente de inspiração neoda- daísta fundada por Nelson Leirner (1932-), Wesley
  • 11. 1918 Duke Lee (1931–2011) e Geraldo de Barros (1923– 1998)1 – foi construída uma instalação fazendo refe- rência a Roberto Carlos. Leirner, que assina o tra- balho Adoração ou Altar a Roberto Carlos, de 1966, foi instigado pela capacidade da indústria da música em construir ídolos com características religiosas: na instalação de dois ambientes – uma catraca de entrada e o altar propriamente dito, separados por uma cortina – o cantor é canonizado silenciosa- mente. A ironia é apresentada de forma ainda mais exacerbada na imagem que é colocada no altar: o retrato do cantor é contornado por lâmpadas neon, uma espécie de negrito visual para seu papel de “rei da juventude” e uma referência ao recurso luminoso em voga na publicidade da época. Um ano antes da Adoração e sem lidar com imagens, ícones ou adotar qualquer tipo de ironia, Hélio Oiticica se integra ao poder mobilizador da música popular e “arma um barraco no MAM”2 na exposição Opinião 65, idealizada por Jean Borghici e Ceres Franco. Levando um cortejo de sambistas vestidos em parangolés ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na abertura da exposição, os diver- sos passistas da Estação Primeira de Mangueira dançavam e tocavam instrumentos de percussão 1 Cf. LEIRNER; et al, 2002. 2 SALOMÃO, 1996, p. 57. em comitiva pelas galerias que abrigavam uma exposição coletiva de Rubens Gerchman, Antonio Dias, Waldermar Cordeiro, Ângelo de Aquino, José Roberto Aguilar, Carlos Vergara e Tomoshige. Como narra o jornalista Claudir Chaves, o artista acaba sendo expulso do museu pela equipe de segurança sob a justificativa do “barulho dos pandeiros, tamborins e frigideiras”, o que não impe- diu o artista de continuar sua ação com o cortejo, agora nos jardins do MAM e assistidos por críticos, artistas, jornalistas.3 Ironicamente forma-se uma situação onde o museu se protege atrás do escudo da preserva- ção do silêncio para retirar o cortejo de sambistas – representantes de camadas sociais pobres e de regiões metropolitanas estigmatizadas – de seus domínios: protegia-se assim a experiência ótica do perigo alienígena, sonoro e popular. Soma-se assim mais um argumento e evidência para o movimento estético que levou o artista à sua conhecida “desco- berta do corpo”. Essa descoberta era para Hélio a “volta ao mundo”, “um ressurgimento de um inte- resse pelas coisas, pelos problemas humanos, pela vida em última análise” e estava intrinsecamente relacionada às andanças que iniciou pelas favelas do Rio de Janeiro com o artista Jackson Ribeiro a 3 Cf. VIANNA, 1995, p. 1 e SALOMÃO, 1996, p. 34.
  • 12. 2120 partir de 1964.4 Como descreve Waly Salomão em Qual é o Parangolé, a área dessas caminhadas “com- preendia arrepios e rodopios também em outras ‘jurisdições’” além do Morro da Mangueira, onde o artista se deparava com “as janelas, as portas e as bocas quentes da percepção” dos bairros popula- res. Tal descondicionamento geográfico do artista, ao descer do que Mário Pedrosa chamou de “torre de marfim de seu ateliê” para vivenciar encontros e amizades no morro, só potencializou a contamina- ção da musicalidade em seu trabalho, algo que os Parangolés (1964) revelam com clareza. A trajetória de Hélio Oiticica pós-Parangolé é talvez uma das mais representativas para abordar as aproximações das artes plásticas com a música popu- lar no Brasil, dada a maneira e a circunstância polí- tica que o levou a esse tipo de debate estético. Assim como José Celso Martinez, Glauber Rocha, Lygia Clark e Rogério Duarte, o artista já estava inserido no começo da década de 1960 em diferentes contex- tos artísticos e intelectuais onde se discutiam as bases da ideia de “tropicália”, muito antes que o tropica- lismo musical ganhasse algum destaque midiático.5 É Oiticica que pela primeira vez utiliza a palavra Tropicália: fora um nome dado a um Penetrável que, 4 OITICICA, doc. n. 0158.68, p. 1, AHO/PHO. 5 COELHO, 2010, p. 125. segundo o artista, era “a primeira tentativa cons- ciente, objetiva de impor uma imagem obviamente ‘brasileira’ ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional”. Caetano Veloso apropria-se do título do pene- trável para dar nome à primeira canção do seu álbum de estreia,6 produzido por Júlio Medaglia e lançado pela gravadora Philips em 1967. É uma can- ção grandiosa, construída por sucessões de imagens e metáforas do Brasil, intercaladas por repetições rítmicas (“Viva Maria, ia ia”) que as celebram em sua particularidade ou contradição. A pertinência conceitual desse termo é tal que os músicos baianos o levarão adiante como bandeira de um desenvol- vimento-ruptura musical, chamado posteriormente de tropicalismo. Não obstante, o artista plástico questionaria os fins para os quais interessaria a for- mação de um ismo – o que comunicava claramente a intenção de se formar um outro movimento de van- guarda – sob o conceito que ele próprio inventara. Como afirma Frederico Coelho, a postura inicial frente à intenção dos músicos baianos é “antitropi- calista”, questionando “o rápido triunfo dos músicos baianos e paulistas em relação à sociedade de mas- sas e seus desdobramentos populares e comerciais”,7 6 BRETT e FIGUEIREDO, 2007, p. 30. 7 COELHO, 2010, p. 122.
  • 13. 2322 referindo-se assim à vinculação da música tropica- lista à indústria fonográfica, sem a qual seria impos- sível sua difusão nacional. Segundo Frederico Coelho, o ano de 1968 foi determinante para que Hélio Oiticica mudasse sua atitude defensiva em relação ao tropicalismo musical, declarando publicamente a influência dos músicos baianos em seu trabalho e escrevendo ensaios sobre essa colaboração artística quando se muda para Londres no ano seguinte.8 Os anos de chumbo da ditadura brasileira que seguiram o AI-5 só fizeram reforçar tais relações, cumplicidade que é claramente percebida na quantidade de documen- tos, ensaios, gravações em áudio (as Héliotapes) que o artista produziu com a participação dos tropicalistas.9 Se existem registros visuais que comunicam como esse diálogo entre Oiticica e músicos foi ao mesmo tempo acalorado e prolífero, destacam-se as fotos que Andreas Valentim faz de Caetano Veloso vestindo o P04 Parangolé Cape 01 em 1968; e a ban- 8 COELHO, 2010, p. 128. 9 Documentos listados no Programa Hélio Oitica [Itaú Cultural]: TROPICÁLIA TIME SERIES 3 / CAETANO VELOSO (doc. No. 0353/69), GILBERTO GIL (doc. n. 0216/71o), Tropicália Time Series 4/ Gilberto Gil (doc. n. 0360/69), TROPICALIA: the IMAGE PROBLEM surpassed by that of a SYNTHESIS (doc. n. 0350/69), Música popu- lar brasileira (doc. n. 0135/68), Gilberto Gil [Héliotapes](doc. n. 0500/71). deira de Oiticica com o lema “Seja Marginal, Seja Herói” estendida ao fundo no palco de uma apre- sentação dos tropicalistas no clube Sucata no Rio de Janeiro10 no mesmo ano. O próprio Caetano Veloso reconhece como o uso da bandeira visava incitar os militares,11 ação que trouxe o resultado desejado: o agente do DOPS Carlos Mello denunciou a obra de Oiticica, acirrando ainda mais o cerco aos artistas.12 Dessa maneira, compreende-se que não havia mais, da parte de Oiticica, como alimentar discor- dâncias sobre a precisão de uso de termos concei- tuais e a definição original de “tropicália” frente à ameaça real e à violência do governo militar após o mais opressor dos atos institucionais. Percebe-se que a urgência da situação política leva o artista a adotar uma posição mais tática. Como afirma Frederico Morais em Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da “Obra”, ser artista na década de 1970 era ser um guerrilheiro, e sua arte uma espécie de emboscada que propõe situações ou se apropria de objetos e eventos sobre os quais não pode con- tinuamente exercer formas de controle, assim, sob as muitas restrições opressoras da censura e da vio- lência do Estado, questionava-se continuamente o 10 DUNN, 2001, p. 142. 11 VELOSO, 2007, s.n. 12 DUNN, 2001, p. 144.
  • 14. 2524 que era a “instituição da arte”.13 Nesse sentido, Hélio Oiticica trabalhava nesse período sob o que cha- mava de antiarte: a sugestão, ou anúncio de que a obra de arte como coisa acabada havia morrido. Nessa nova ética de trabalho, a apropriação de imagens e material sonoro da indústria fonográfica anglófona – a indústria dominante – se intensificará progressivamente durante o exílio voluntário em Londres em 1969 e no período de 1970 a 78 quando o artista reside em Nova Iorque. Já se completam oito anos do episódio do Opinião 65 no MAM, e o artista passa a expressar o mesmo entusiasmo criativo e vital que possuía pelo samba em relação ao rock, conside- rando-o tão poderoso na revelação do corpo quanto o ritmo do Morro da Mangueira. É sob esse dis- curso – renovado e cosmopolita – que Oiticica jun- ta-se a Neville D’Almeida e cria o CC5 Hendrixwar/ Cosmococa Programa-in-Progress, um ambiente com redes de descanso, música de Jimi Hendrix e proje- ções de fotografias do guitarrista com a intervenção dos desenhos de cocaína de D’Almeida. Como em seus Penetráveis, o público participava ocupando esse lugar construído para ativá-los sensorialmente. Ali deitam nas redes, ouvem música e assistem às projeções de slides: um lugar para a dissolução das separações entre plateia, narrativa e sensorialidade, 13 MORAIS, 1970, p. 171. povoado pelas imagens e sonoridades do guitarrista mitológico. Dentro da ideia de que o som do rock e do samba ativa corpos e espaços, amalgamando-os, Helio Oiticica, nos últimos anos de sua vida, chega a afirmar que sua arte é música: [...] descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é “uma das artes” mas a síntese da consequência da des- coberta do corpo: por isso o ROCK p. ex se tornou o mais importante para a minha posta em cheque dos problemas chave da criação (o SAMBA em q me ini- ciei veio junto com essa descoberta do corpo no início dos anos 60: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro): o ROCK é a sín- tese planetário-fenomenal dessa descoberta do corpo q se sintetiza no novo conceito de MÚSICA como totalidade-mundo criativa em emergência hoje: JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK: a menos q queiram os artistas ditos plásticos continuar remoendo as velhas soluções pré-descoberta do corpo ao infinito: e não é o q está acontecendo de certa forma?: não seria a essa síntese MÚSICA p totalidade plástica a q teriam con- duzido experiências tão diversas e radicalmente ricas na arte da primeira metade do século quanto as de MALEVITCH KLEE MONDRIAN BRANCUSI? E porque é q a experiência de HENDRIX é tão próxima e faz pensar tanto em ARTAUD? (OITICICA, 1979, s.n.). É interessante comparar a transformação do discurso de Oiticica com relação à música que só se faz possível por meio da profusão fonográfica:
  • 15. 2726 o objetivo mercadológico, principal motivo para a crítica que primeiramente expressou em relação ao tropicalismo musical, muda de lugar. Oiticica reco- nhece e reverencia o poder da narrativa dos mitos do rock anglófono, ainda que construídos (e talvez por justamente o serem), e equipara a intensidade da experiência estética de sua música à de nomes principais da História da Arte. É contundente a observação que Oiticica faz sobre os mitos do rock anglófono e da arte europeia e norte-ameri- cana, e no sentido em que ambos os sistemas que se impõem como segunda natureza, como narra- tivas históricas principais, elas se relativizam e se revelam como construções e jogos de poder em apropriações como o CC5 Hendrixwar/Cosmococa Programa-in-Progress. Recontextualizações dos símbolos da indústria fonográfica, como fez Hélio Oiticica, nos ilustram o início de uma aproximação entre artistas e música no Brasil. Se houve um motivo político para que Oiticica se unisse aos músicos tropicalistas e visse em Hendrix a expressão da liberdade, as propostas de Cildo Meireles deixam a manifestação artística por meio de ícones e estandartes para se dar por intervenções em materiais, ambientes e procedi- mentos próprios da economia da música. O estú- dio, o disco e produção fonográfica nos anos 1970 se tornam assim um novo campo de experimentação. Um breve histórico da economia do disco no Brasil Quando Cildo Meireles grava seu primeiro disco, Mebs/Caraxia, em 1970 – a gravação em vinil mais antiga da qual este livro trata –, a indústria fono- gráfica já estava consolidada no país há quase sete décadas. A estrutura industrial que se desenvolve no início do século XX propulsionada pelo cresci- mento do mercado mundial de fonógrafos e seus cilindros de cera, gramofones e seus discos, terá como importante combustível a necessidade de companhias europeias de encontrar mercados fora do continente assolado pela crise da Primeira Guerra. Empresas alemãs, cuja importância era cen- tral para a indústria fonográfica do período, tiveram seus bens confiscados em diferentes países, pressio- nando ainda mais a urgência da expansão para a América e Ásia.1 Foi nessas circunstâncias que a International Zonophone Company firmou um acordo comer- 1 FRANCESCHI, 1984, p. 93.
  • 16. 2928 cial com uma figura pioneira na consolidação da economia fonográfica no Brasil, Frederico Figner. Norte-americano de origem tcheca, os fonógrafos que trouxera dos Estados Unidos em 1891 encanta- vam o público em audições coletivas no Belém do Pará, Manaus, Recife, Fortaleza, Salvador, Natal e no Rio de Janeiro, onde se instalou definitivamente. As audições promovidas por Figner, com um certo toque de ilusionismo e espetáculo de mágica, eram experiências que preconizaram o que seria o cinema alguns anos mais tarde, quando chegou ao Brasil em 1897: nessas sessões o público não só ouvia, incrédulo, o som gravado, como testemunhava registros feitos em cilindros de cera nas próprias salas de audição. Em sucessão ao fonógrafo, o surgimento do gra- mofone – então uma nova tecnologia que utiliza a mídia do disco simples ou duplo – significaria outras oportunidades para o comerciante norte-americano no Brasil. Não só o aparelho tocava as gravações muito mais alto, o que permitia um público maior em audi- ções coletivas, como a Zonophone, quando percebeu a hegemonia de Figner sobre o mercado brasileiro, ofereceu a ele a possibilidade de produzir gravações de artistas brasileiros em discos duplos em troca de representação exclusiva e de um investimento finan- ceiro considerável. Funcionaria da seguinte maneira: a Zonophone se comprometeria a produzir um reper- tório de 100 matrizes de 10 polegadas e 250 de 7 pole- gadas desde que fossem pedidas 250 cópias de cada uma delas e que fossem comprados 50 gramofones Zonophone por mês. O empresário também deveria arcar com os custos de alfândega no desembaraço dos equipamentos e materiais e remunerar os artistas. Foiassimqueoacordopossibilitouavindadeum técnico da Alemanha em 1902 para o que seria a pri- meira gravação dos discos brasileiros. Artistas como Cadete, Bahiano e a Banda do Corpo de Bombeiros foram gravados pelo técnico da Zonophone na Casa Edison, que enviaria os discos de cera de volta à fábrica de Joseph Berliner, em Hanover, para serem transformadas em matrizes de cobre. Na Alemanha, os discos foram prensados e depois exportados para o Brasil para a comercialização. O sucesso foi rápido: entre 1911 e 1912, a Casa Edison vendeu 840 mil discos nopaís,umnúmerosurpreendenteseforconsiderado como a tecnologia de áudio era economicamente ina- cessível para a maior parte da população brasileira de então, e que só reforça o poder do controle de mer- cado, ou cartel, que Frederico Figner defendia junto à International Talking Machine. Figner e a companhia detinham patentes locais das tecnologias e mídias de gravação com as quais processavam judicialmente qualquer outra empresa que pretendia se instalar no país, minando ao máximo a concorrência. Somenteem1912opaísterásuaprimeirafábrica de discos, a Fábrica Odeon, construída também por
  • 17. 3130 Frederico Figner no Rio de Janeiro. A construção foi patrocinada pela International Talking Machine, marca pertencente à norte-americana Victor Talking Machine, que havia comprado a alemã Zonophone nove anos antes dessa nova empreitada na América do Sul. Em seus primeiros anos, a fábrica processava os registros sonoros por meios mecânicos, evoluindo para o processo elétrico doze anos depois, quando foi vendida para a Transoceanic Trading Company. Esse avanço tecnológico agradou aos ouvidos do público, considerando que em vez de somente regis- trar a energia mecânica do som no disco – o que reduzia nuances sonoras e exigia dos músicos uma distorção na performance para que o som da voz ou do instrumento fosse melhor captado – o processo elétrico acontecia pelo sistema eletromagnético do microfone condensador. Isso significava que um espectro muito mais amplo de frequências sonoras seria registrado na mídia e que o intérprete não mais necessitaria adaptar sua performance para os limites do cone de captação do antigo processo mecânico. A partir de então, com a possibilidade de utilizar múltiplos microfones, posicioná-los da maneira que convinha ao engenheiro de gravação e captar a reverberação do som no estúdio, o espaço tornou-se também um elemento estético e até mesmo um ins- trumento da gravação.2 2 CACERES, 2010, p. 92. Humberto Franceschi, autor de O Registro Sonoro por Meios Mecânicos no Brasil, enfatiza a dinâmica entre a cultura da música popular brasi- leira e a expansão do mercado fonográfico no país, descrevendo como a tecnologia da gravação deve- ria se adaptar a essa estética, ao mesmo tempo que “criava a unidade de linguagem da música e, além de cristalizar o sucesso, definia o momento musical da época”. É sabido que muitos gêneros de sucesso do início do século se adaptaram às condições téc- nicas da gravação, assim como o oposto: a delica- deza do violão do choro e sua composição com a flauta, cantores e cavaquinho eram um desafio para os primeiros engenheiros de gravação, que prefe- riam o grande rendimento sonoro da interpretação das bandas militares, que seriam melhor registradas pelos limitados processos mecânicos. No entanto, na sede pela expansão de mercado, essas adaptações técnicas foram rápidas o bastante para assimilar todos os gêneros em voga na época: as modinhas, lundus, tangos, valsas e dobrados esta- vam disponíveis em disco.3 De forma mais cética, José Ramos Tinhorão examina em A História Social da Música Popular Brasileira que a música sofre- ria transformações que a reduziriam “em fórmulas fabricadas para a venda”, bastaria “produzir o que 3 FRANCESCHI, 1984, p. 89.
  • 18. 3332 ‘o povo gosta’”. Na análise de Tinhorão, a indústria fonográfica do início do século já exibia as bases culturais e mercadológicas pelas quais foi possível disseminar modismos, manipular códigos de com- portamento, criar o sistema do estrelato e influen- ciar a procura por um determinado estilo musical por muitas décadas, poder que somente terá seu declínio nesta última década. No lastro desse sucesso comercial e na varie- dade de métodos de gravação que se fizeram pos- síveis pelo processo elétrico – significando uma menor restrição de patentes –, outras fábricas se estabelecem no mesmo período da década de 1920, como a Parlophone Columbia em São Paulo e Brunswick e Victor no Rio de Janeiro. Apesar de pouco ameaçarem o império da Odeon, seu surgi- mento foi de grande impacto para a produção cul- tural da época: com uma cadeia econômica mais ampla e com maior capacidade de distribuição, a imprensa decide dedicar ao disco sessões de jornais como O País e o Cruzeiro e até mesmo criar uma revista especializada, a Phono Arte.4 O que surpreende é que a história da indústria fonográfica no Brasil ao longo do século XX rara- mente teve períodos consistentes de estabilidade: é uma história que percorre crises sucessivas, como 4 SEVERIANO, 2008, p. 101. por exemplo a crise de 1929, que acompanhou a recessão americanaetambémfoiatribuídaàpopula- rização do rádio, implementado no país em 1922 por Edgar Roquette Pinto. Este novo sistema de trans- missão sonora era então desatrelado da indústria da gravação fonográfica, ou seja, a maior parte do con- teúdo vinculado no rádio era produzido ao vivo. Os produtores da época ainda não haviam estruturado um sistema de coleta de direitos de reprodução dos discos pelos quais poderiam gerar renda, o que sig- nifica que houve um momento durante os primeiros anos da década de 1920 onde a indústria fonográfica e as emissoras de rádio eram sistemas independen- tes, não havendo dinâmicas econômicas capazes de remunerar autores, produtores e a gravadora pela execução pública da obra. As décadas de 1930 e 1940 foram determinantes para o fortalecimento do rádio e para a definição de seu papel político, seja como uma ferramenta que vincularia o discurso nacionalista de Getúlio Vargas, seja como um dos sistemas de comunicação – junto ao cinema e à própria indústria fonográfica – pelos quais a aproximação cultural entre Brasil e Estados Unidos se daria. É no início desse período também que o rádio torna-se menos amadorístico, já que encontraria um novo e promissor modelo econômico que até então se baseava em doações e mensalidades “voluntárias” dos ouvintes: em 1932,
  • 19. 3534 Vargas autoriza o rádio a fazer propaganda comer- cial remunerada.5 José Severiano, historiador e pro- dutor musical, compreende que o fortalecimento da indústria do rádio, a inovação do sistema elétrico de gravação e o advento do cinema falado são fato- res determinantes para a inauguração de um novo período na cultura brasileira, chamado por diver- sos autores de “Época de Ouro”, que vigorou até o meio da década de 1940, e que sofreu a regulação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão criado pelo governo Vargas que promovia a censura de letras, proibia ou incentivava o uso de temas específicos e patrocinava o projeto de “puri- ficação” do samba.6 O Departamento de Imprensa e Propaganda se dissolve junto com a queda de Vargas, deixando, no entanto, as bases para as próxi- mas estruturas de regulação e censura da produção cultural brasileira. A indústria fonográfica sob o governo de Kubitschek receberá importantes inovações tecno- lógicas que modificarão permanentemente a dinâ- mica da gravação em estúdio. A fita magnética e a possibilidade de gravar em oito diferentes canais de áudio dão ao produtor a opção de gravar instru- mentos separadamente em substituição à gravação 5 SEVERIANO, 2008, p. 99. 6 Ibid., p. 100. de uma performance única com todos os músicos. Esse método que sucedeu a gravação em cera tam- bém estende consideravelmente o tempo de grava- ção, possibilitando assim o surgimento do formato Long Play (LP) na mesma década. A contradição de todos esses avanços técnicos no Brasil de Juscelino é que eles não se expressam com o mesmo vigor na arquitetura dos ambientes da gravação fonográfica. Em 1955, a situação técnica dos estúdios da Odeon era modesta, segundo os relatos de André Midani: o estúdio se reduzia a “um espaço mínimo, com um tratamento acústico que se limitava a umas placas de compensado aqui e ali, sem ar-condicionado”. A Odeon só teria melhores condições depois da reforma empreendida naquele ano pelo britâ- nico Bill Morris, então presidente da companhia. O investimento será fundamental para que se torne tecnicamente possível gravar a importante produ- ção da geração de músicos que surgiria logo depois: a geração da bossa-nova. Midani é enfático ao descrever como esse novo gênero transformaria as relações entre o estúdio de gravação e o artista: Um dos melhores exemplos é, de novo, João Gilberto, que impôs gravar 13 vezes a mesma canção até se dar por satisfeito, numa época em que o intérprete normal- mente tinha o direito de repetir somente duas ou três
  • 20. 3736 vezes a sua performance. Outra mudança fundamental aconteceu na relação entre arranjadores e cantores: até então, com raríssimas exceções, o arranjador/produtor escolhia a música que considerava conveniente para o cantor, determinava o tom do arranjo, escrevia sem muito consultar o intérprete, que, no estúdio, tinha meia hora para colocar a voz (MIDANI, 2008, p. 79). A partir da nova geração da música brasileira, e sob melhores condições tecnológicas, o artista passou a ter maior propriedade sobre o processo da produção do disco. Midani também enfatiza a maior proximidade que o intérprete tinha com a própria estética de sua produção, tendo cada vez mais “liberdade na escolha do repertório e no enca- minhamento do arranjo”. Essa diferença também se expressa nas vendas. A bossa nova foi um conjunto compreensivo de inovações musicais, imaginários urbanos e códigos de comportamento que se des- tinavam a um novo nicho do mercado: o público jovem, antes pouco atendido pelo mercado fono- gráfico como um grupo com características especí- ficas. É preciso lembrar que a presença da TV, cada vez mais pungente na década de 1950, permitiu uma maior exposição dos artistas em programas musi- cais, onde eles poderiam mostrar toda sua “bossa” e sofisticação, além de dar inúmeras oportunidades de publicidade e divulgação à indústria fonográfica. Assim, nesse período surge o “marketing psica- nalítico” na economia da música, que visava poten- cializar a empatia do artista de uma determinada gravadora com seu público. Partia-se do princípio de que certos artistas estavam naturalmente predis- postos a disseminar imagens e valores com as quais um grande número de pessoas poderia se identificar. No entanto, para que essa identificação acontecesse de forma espontânea e profunda, era necessário que fosse comunicada no inconsciente coletivo uma certa genuinidade com a qual o artista compunha e inter- pretava suas obras. Era preciso, portanto, colocar essa genuinidade à prova, moldá-la e empacotá-la em um embrulho que seria enviado direto a um inconsciente de emoções, memórias e desejos em entrevistas na mídia televisiva ou impressa, ou em situações cuida- dosamente planejadas pelo produtor e pelos gravado- res que seriam depois relatadas em jornais e revistas. O mito, a partir de então, transbordava a mídia fono- gráfica, televisiva e radiofônica e lançava-se na vida quotidiana, no imaginário do público. O momento da Era dos Festivais, cujo período de maior relevân- cia se concentra entre 1966 e 1968, era propenso a essas experiências, já que as competições musicais estavam no centro das atenções das mídias massivas da época. A música então ocupava um tempo pri- vilegiado da atenção dos espectadores e modulava suas emoções e opiniões. A segunda grande crise do mercado fonográ- fico aconteceu também na década de 1960, acom-
  • 21. 3938 panhando a crise que seguiu o fim do governo de Juscelino,causadapelaquedabrutaldoinvestimento, a alta da inflação e a redução da taxa de renda bra- sileira, motivos pelos quais se justificou a criação do PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo). Junto ao argumento do “perigo comunista” personi- ficado pelo presidente eleito João Goulart, foi dado o Golpe Militar de 1964. Sob circunstâncias menos otimistas que as do desenvolvimentismo do governo anterior, o lirismo e a delicadeza da bossa-nova pas- sam a ser menos bem recebidos pelos meios televi- sivos, que estavam agora mais propensos à grandio- sidade musical dos festivais e às polêmicas que os envolviam. A mudança de recepção se manifestou também no público consumidor jovem, que começa a se dividir: uma parcela passa a se tornar cada vez mais politizada, e outra busca no iê-iê-iê da Jovem Guarda a trilha para o desejo de viver uma situação econômica muito menos precária e pessimista do que aquela que os cerca. As gravadoras se posicionam favoráveis tanto a patrocinar uma música que desse vazão à crítica socialquepartedomercadojovemqueriaentãoouvir quanto a atender a parcela mais apolítica e evasiva. O gênero que poderia dar cabo simultaneamente des- sas duas parcelas do mercado foi o rock, ainda que interpretado por artistas de estética e posicionamen- tos políticos radicalmente divergentes. As sutis iro- nias da Tropicália e sua originalidade de propostas de reinvenção do Brasil que se manifestavam em sua música e vida encontraram na guitarra elétrica a energia sonora necessária para que essa mensagem fosse suficientemente poderosa e nacional. Ainda que até 1971 os tropicalistas não fossem sinônimo de sucesso de vendas, forçando gravadoras como a Philips a administrar seu orçamento tendo no elenco artistas de maior saída, que fechariam as contas,7 o movimento é um ótimo exemplo de como o mercado fonográfico encontrou maneiras de assimilar a com- plexidade social e política que assolava o país. O disco compacto da canção “É proibido proi- bir”, de Caetano Veloso, ilustra um pouco dessa cria- tividade. O músico, em uma apresentação no TUCA (Teatro da Universidade Católica) em 1968 no III Festival Internacional da Canção, já abalado pela hostilidade do público durante as apresentações que precederam a d’Os Mutantes, enfurece-se quando começa a apresentação com essa banda. O som ato- nal do grupo e a performance provocativa de Caetano Veloso levam o público a reagir com histeria e vio- lência, jogando lixo e objetos nos músicos. É pos- sível afirmar, pela descrição dos relatos de Caetano Veloso em Verdade Tropical, que a plateia represen- tava a parcela da juventude que se identificava com os preceitos da CPC UNE (Centro Popular de Cultura 7 MIDANI, 2008, p. 116.
  • 22. 4140 da União Nacional dos Estudantes) da arte popular revolucionária: um ideal de que uma elite intelectual deveria estar a serviço de despertar a consciência das massas – para ela alienada – por meio de uma arte genuinamente popular e nacional, o que significava que deveria estar livre de qualquer influência estética estrangeira. O que os tropicalistas estavam propondo ali não estava em concomitância com essa ideologia. Caetano então grita em protesto ao microfone, uma lendáriaefuriosareaçãoverbalquerendeuagravação do Lado B do disco compacto de “Proibido Proibir”. Música e protesto agora estão literalmente juntos em um só produto. A CPC UNE também possuía proje- tos de música e protesto equivalentes, por exemplo o LP “O Povo Canta”, de autoria da própria CPC com artistas como Carlos Lyra, Francisco de Assis, Billy Blanco e Nora Rey, lançado de forma independente em 1963. “Aquele Abraço”, de 1969, foi também utilizada em uma estratégia de promoção dos tropicalistas elaborada pela Polygram. Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram a canção na Bahia, tendo em vista que estavam deixando o país para o exílio compulsório em Londres. A Polygram aproveitou a circunstância para lançar a música de despedida no rádio, no exato momento da decolagem do avião dos músicos.8 8 MIDANI, 2008, p. 117. Como examina Christopher Dunn em Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian Counterculture sobre a atitude de Caetano Veloso e dos tropicalistas como um todo, frente às estruturas da mass media, os músicos reconheciam que “não havia ‘espaço puro’ para artistas que participavam na indústria massiva da música. No máximo, os artistas poderiam criticar o sistema estando dentro dele enquanto permaneciam coniventes com seu status de profissionais dessa indústria”. Entendendo a ambiguidade inerente à carreira de um artista pop que se posiciona criticamente frente aos valores e estruturas políticas vigentes, músicos e gravadoras elaboraram estratégias de ação e exposição, tendo o crescimento da venda de discos como um dos obje- tivos principais. Após o AI-5, experimentos dessa natureza já não poderiam mais acontecer da maneira que eram antes feitos. O Departamento de Censura se impõe frente ao departamento jurídico das grava- doras brasileiras para regular a produção de todas as canções que seriam lançadas no mercado. André Midani narra que essa responsabilidade de regula- ção foi transferida diretamente para as gravadoras que deveriam cooperar com os “princípios patrió- ticos da revolução”, imposição que foi administrada pela Polygram, que por meio de Midani afirma ter contornado muitas das exigências proibitórias do
  • 23. 4342 governo militar com auxílio de sua importante posi- ção em um conglomerado internacional de compa- nhias fonográficas. O Departamento de Censura, por sua vez, tentava expandir o procedimento de regulação de canções até para o catálogo de álbuns internacionais, que na década de 1970 tivera o seu maior crescimento. As décadas de 1960 e 70 são um momento de transformação da economia fonográfica no Brasil. Os lançamentos internacionais entre 1972 e 1975 chegam a superar os domésticos em vendas, um fenômeno que resulta de estratégias de companhias de capital nacional e estrangeiro que apostam no crescimento do mercado dos compactos de música internacional.9 Uma das razões era o investimento no lançamento do álbum de um artista estrangeiro ser consideravelmente mais baixo. A gravadora não precisaria arcar com os custos de produção e poderia incorporar rapidamente as estratégias de divulgação do artista – que seria lançado no país já com aclamação internacional –, além de todo o seu material gráfico.10 Para compensar a desvantagem na qual a música nacional se encontrava naquele momento, foi aprovada uma lei de incentivo por abatimento fiscal para companhias fonográficas que 9 VICENTE, 2006, p. 119. 10 MORELLI, 1991, p. 48. investissem em lançamentos de música brasileira. Os álbuns contemplados pela lei ganhariam o selo “Disco é Cultura”.11 A internacionalização não se restringe somente ao catálogo das gravadoras. Novas companhias transnacionais chegam ao país, como a EMI, que adquire a Odeon em 1969, a WEA, braço fonográfico da Warner que se estabelece em 1976, e a BMG em 1979.12 É uma ameaça considerável para a parcela do mercado atendida pelas gravadoras brasileiras, que são empurradas, segundo Eduardo Vicente, “tanto para a prospecção de novos artistas e tendências como para a exploração de segmentos marginais e menos rentáveis do mercado, assumindo um papel similar ao reservado às indies nos países centrais”. Assim, entre a pressão do Departamento de Censura, a internacionalização do catálogo e a expansão das transnacionais no país, seguiu a pro- dução fonográfica na década de 1970, que rendeu ao mercado o inédito recorde de 26,3 milhões de cópias vendidas em 1979 contra 6,7 milhões em 1969. 11 MORELLI, 1991, p. 49. 12 VICENTE, 2006, p. 116.
  • 24. 45 Cildo Meireles Afeição Cildo Meireles apresenta em 2004 na Bienal de Liverpool um trabalho chamado Liverbeatlespool. O trabalho é uma colagem sonora feita a partir da banda que transformou a indústria fonográfica na década de 1960, os Beatles, utilizando todas as can- ções do álbum Number I, uma coletânea lançada em 2000 com 27 canções que chegaram ao número 1 das paradas internacionais. Para executar a colagem de Liverbeatlespool, o artista estabeleceu um eixo dos 50% da duração das canções. Levando em conta que elas possuem durações diferentes, Hey Jude, a mais longa, é a que primeiro toca. Depois de um certo tempo virá a próxima, Help, e assim elas se somam tendo o eixo dos 50% como momento de maior cacofonia, para terminar novamente com o cele- brado “Na Na Na, Hey Jude”. A gravação é apresen- tada junto com uma impressão da letra da canção The Ballad of John and Yoko e outras que ficam ali Foto:©PatKilgore
  • 25. 4746 irreconhecíveis pois são retrabalhadas graficamente reproduzindo o mesmo procedimento de sobrepo- sição que foi feito com a trilha sonora. O single Hey Jude é de fato um marco comercial na história da indústria fonográfica mundial. Com sete minutos e onze segundos, longuíssima se compa- rada à do padrão vigente no mercado pop da época, a canção também foi responsável por uma modifi- cação técnica que permitiu que os discos single de 7 polegadas acomodassem tal duração.1 Era o início das gravações em fita magnética que possibilitavam oito canais de registro. Hey Jude, que foi primeiramente lançada em 1968 como o lado B de Revolution, impul- sionou a venda de 6 milhões de cópias do single em três meses no mercado internacional. A atitude do artista de voltar-se para o conjunto de discos single de maior vendagem dos Beatles reflete sua longa história com os discos, unida a uma percepção aguçada sobre seu impacto cultural. É quando se muda para Nova Iorque em 1969 que o artista passa a apreciar blues, jazz e rock, gêneros dos quais se aproxima não pela performance ao vivo, mas por meio da gravação fonográfica. Sua relação afetiva com tais objetos é percebida na maneira em que coloca seus trabalhos fonográficos para comu- nicar o que são em um nível mais primário: supor- 1 LEWINSOHN, 1987, p. 146. tes para a escrita sonora. A partir dessa constatação, fica mais claro qualquer posicionamento crítico quanto a sua economia. Mebs/Caraxia Para Cildo Meireles, existem formas possíveis de se construir uma escultura em um disco. Um conteúdo exclusivamente sonoro que se comporta- ria como escultura, que mesmo na imaterialidade poderia exprimir uma certa tridimensionalidade, uma certa representação de monumento,2 sendo simultaneamente virtual e tátil. Essas são proposi- ções que guiaram Cildo Meireles na investigação estética do espaço virtual da gravação fonográfica em Mebs/Caraxia: [...] A ideia era fazer uma escultura sonora. [...] Um lado chamava-se “mebs” por causa da fita de Moebius; o outro lado era uma espiral, e para o título dessa espiral, eu resolvi usar a união de duas palavras referentes a estru- turas espiraladas: caracol e galáxia. Daí o nome “caraxia”. [...] Mebs/Caraxia é o registro de frequências sendo alte- radas. Durante a gravação, eu tinha um gráfico e ficava seguindo-o. Estabelecemos um eixo e então a frequência ficava acima ou abaixo dele. Então, nós fomos recons- truindo aquele gráfico: a ideia era literalmente fazer gráfi- cos sonoros. Como o gráfico lidava com a frequência e o tempo, eu tinha dois eixos (MEIRELES, 2009, p. 249). 2 KRAUSS, 1979, p. 33.
  • 26. 4948 Para realizar o projeto do disco compacto Mebs/Caraxia em 1970, Cildo Meireles conta em depoimento que procurou o endereço de gravadoras em uma lista telefônica, escolhendo o da Musidisc, um selo nacional inaugurado por Nilo Sergio em 1953 no Rio de Janeiro. No estúdio foi recebido por Ari Perdigão, diretor artístico da Musidiscs, que o apresentou ao engenheiro de gravação, e assim, sem muitas inquisições por parte da gravadora, o artista pôde começar seu projeto. Perdigão, por meio da Musidiscs, patrocinou o projeto e ainda instruiu o artista para a confecção das capas, que foram estam- padas com uma fotografia da Via Láctea, obtida pelo artista com ajuda do então astrônomo chefe do Observatório Nacional. Para demonstrar a mudança numérica dos grá- ficos desenhados por Cildo, foi sugerido pelo enge- nheiro que fosse usado um oscilador de frequências, um aparelho que gera uma onda por meio de uma corrente elétrica. A frequência gerada pelo oscilador pode variar em forma (senoide, quadrada, serrote, etc.) e pode ajudar a demonstrar como se comporta o elemento mais elementar do som: a onda mecâ- nica. A sonoridade de um instrumento acústico, por exemplo, é constituída por uma ampla gama de ondas mecânicas que variam em forma e compri- mento. A essa gama é dado o nome de “timbre”. O que o oscilador gera com a ajuda da eletricidade é o elemento mais puro e simples do som – uma única frequência – eliminando a informação do timbre, a informação que a sonoridade complexa traz sobre os materiais que a compõe. Cildo Meireles poderia então utilizar a mais simples das sonoridades para compor duas for- mas topológicas: a fita de Moebius e uma espiral. Trabalhar a topologia em si, uma área da geometria na qual os princípios euclidianos de tridimensiona- lidade (altura, largura e funcionalidade) não ope- ram, só se fez mais desafiador quando os números representados nos gráficos desenhados por Cildo emitiam frequências impossíveis para os limites da masterização do disco de vinil, quebrando sete agu- lhas de gravação durante o processo denominado de “corte da matriz”. Ambas as faixas do disco compacto possuem ritmos definidos e frequências que se repetem e se alternam em glissando (um deslize de uma frequên- cia para outra). Mebs, mais frenética que Caraxia, tem tons definidos que variam periodicamente: duas linhas que transitam rapidamente de frequên- cias muito agudas a muito graves em uma espécie de curva estreita. Quando chegam nas frequências altas, ficam ali por mais tempo do que nas baixas. Outras duas linhas atrás dessas seguem suas formas, porém se alternando entre frequências média-altas e média-baixas e nem sempre no mesmo sentido que
  • 27. 5150 as linhas do primeiro plano. O ritmo de Mebs é defi- nido por pulsos (que aparentemente não fazem parte do gráfico da fita de Moebius) deliberadamente colocados em uma espécie de “segundo plano”, ou grid, para dar uma melhor sensação de espaciali- dade. Esse segundo plano também cria um ambiente representativo para as linhas curvas principais, como uma tela, um papel em branco ou uma sala. O glissando, que é um deslize contínuo de um tom para outro, é uma estrutura musical adequada para criar a impressão “unidimensional” em Mebs/ Caraxia, como se estivéssemos deslizando com os ouvidos na borda única da fita de Moebius. O glis- sando, uma forma que se desenvolveu na música ocidental no século XX, é a mais simples das linhas, sempre na iminência de se tornar melodia,3 e, nas palavras do compositor Edgar Varèse, é “o desenho de uma linha descrevendo a gradação infinita da natureza”.4 Chamar glissandos e pulsos de escultura, porém, é quase uma analogia do próprio artista, já que a visão e a audição reconhecem formas e desenvolvimen- tos no espaço de maneiras muito diferentes, como Rodolfo Caesar percebeu ouvindo a faixa Caraxia: 3 KAHN, 1999, p. 83. 4 Ibid. p. 85. Duas espirais que se cruzam no meio de suas trajetó- rias, uma vinda de cima para baixo, outra no sentido inverso. No papel o olho vê que as linhas se cruzam, aceitando o óbvio que aqueles trajetos têm como função a continuação após o cruzamento. No escuro o ouvido não pensa assim. Ouvimos dois glissandi simultâneos, um vindo do alto (agudos) e outro de baixo (graves). Quando as duas linhas se aproximam, a convergência é prevista, mas em seguida o cruzamento é duvidoso. Não podemos afirmar que as linhas tenham se cruzado, assim como não podemos jurar pelo contrário, isto é, que cada uma volta para seu ponto inicial. Ou pode- mos pensar ambas as soluções (CAESAR, 1987, p. 53). Vemos aqui que uma linha como é percebida na dimensão da visualidade assume outro compor- tamento espacial quando traduzida para a escuta. Por que então continuar chamando Mebs/Caraxia de escultura? Foi uma escolha do artista, que buscou o que é atraente para o ouvido na ideia de escultura criando uma nova ponte cognitiva entre sua fisica- lidade, seu apelo tátil, e a virtualidade do som gra- vado. Para garantir que essa conexão se estabeleça na experiência de ouvir o disco, porém, Cildo Meireles tinha de entregar essa informação ao ouvinte. Nesse sentido, o disco é também uma estratégia concei- tualista, já que existe uma prerrogativa ao objeto, uma proposta ou conceito que é informado antes da experiência do observador/ouvinte, um acordo verbal entre ele e o artista, mediado exclusivamente pelo próprio trabalho.
  • 28. 5352 Índios e padres Outra noção de espaço emerge em Sal Sem Carne, de 1975, o segundo disco do artista e consi- derado por ele um projeto de “rádio-novela”. Cildo deixa a discussão sobre os limites da geometria que faz em Mebs/Caraxia por meio do som eletrônico para operar agora por meio de símbolos e narrativas históricas que demarcam as divisões ou interseções dos espaços do Brasil indígena e do Brasil português. Sal Sem Carne provoca por meio do som o encontro de diferentes territórios e suas políticas, por meio dos discursos de indivíduos ou instituições, o que é, de certa maneira, outra forma de manifestação da geo- metria na complexidade sócio-histórica do Brasil. Cildo afirma em diversas entrevistas que men- cionam seu segundo disco que teve como símbolo dessa oposição territorial o massacre de indígenas no Tocantins na década de 1940 (conhecido his- toricamente como o Massacre dos Índios Krahô), que chegou na década de 1940 ao conhecimento do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no Rio de Janeiro,5 onde trabalhava o pai do artista, o indige- nista Francisco Meireles. Segundo o depoimento de Cildo, a denúncia de um pastor protestante havia chegado à capital após uma série de tentativas de 5 CORREIA, 2002. fazendeiros do Centro-Oeste em exterminar os Krahô em disputas territoriais. Os arquivos online do ISA, o Instituto Sócio-Ambiental, de fato relatam que Mundico Soares, desde a década de 1930 her- deiro de três grandes fazendas da região, é citado como responsável pelo assassinato de vinte e seis índios krahô e um sertanejo na década de 1940. Cildo conta também que seu pai trabalhou na con- versão do inquérito administrativo do conflito por terras em um inquérito policial, assim que a tra- gédia finalmente veio à tona no Rio de Janeiro. O inquérito levou Mundico Soares à prisão por cinco anos pela morte dos Krahô e do sertanejo. O disco foi produzido pela gravadora brasileira Tapecar (extinta em 1980, quando foi comprada pela também nacional Som Livre) a partir do mate- rial sonoro que Cildo coletou de diversas fontes que considerou representativas desse conflito histórico, inclusive no próprio Tocantins.6 Na mesma região do conflito, Cildo gravou entrevistas com mora- dores não índios, aos quais perguntava sobre suas impressões sobre a vida e o sujeito indígena. É pos- sível ouvir no LP o próprio artista perguntando aos moradores, que respondiam com, entre outras opi- niões, “o índio é forte”, o “índio não crê em Deus”, “o índio come carne sem sal”. Essas falas são perpassa- 6 Segundo Melatti (1967, p. 4), a região do conflito se localiza no município de Babaçulândia – TO.
  • 29. 5554 das por diversos outros discursos e sons que podem ser manipulados pelo próprio ouvinte em seu apa- relho de áudio, já que no disco foi usado um recurso de mixagem que permite o controle dos níveis do canal esquerdo e direito. O disco é constituído por 8 canais: quatro ligados à cultura branca-portuguesa e quatro ligados à cultura indígena. Um dos oito canais, ligado à cultura branca, é exatamente a contagem da rádio-relógio, que dura 50 minutos, e marca o eixo do trabalho. Há no trabalho a gravação da festa do Divino Padre Eterno, em Trindade, e uma gravação, que é uma espécie de terceira margem do rio, num acampamento em São Cotolengo, que é uma das duas ou três maiores romarias do Brasil. Tenho guardado na memória as pessoas caminhando em frente à casa da minha avó, nas décadas de 1950 e 60. Elas passavam rezando, caminhando de joelhos, “pagando promessas”, carregando objetos e seguindo a romaria. Além disso, há no disco uma entrevista com o Zé Nem, o índio Xerente, cuja história se remete ao Zero Cruzeiro, uma outra entrevista com um serta- nista, que trabalhou com o meu tio Chico e Apoena (meu primo) e finalmente uma terceira entrevista com os índios kaiapós. O disco foi feito de uma forma onde num dos canais há a possibilidade de se mixar/regular o discurso dos “brancos” e dos “indígenas”. Toda a cap- tação dos sons foi feita na Brasil: a rádio-relógio no Rio de Janeiro e o resto em Goiás (MEIRELES, 2009, p. 259). Escutar Sal Sem Carne é participar da cons- trução de discursos de diversas origens, naturezas e conflitos do Brasil: enfrentam-se e se entrecru- zam no espaço acústico do disco canções folclóricas sertanejas goianas, a voz da Rádio Relógio AM que informa o horário oficial de Brasília, a voz de mora- dores de áreas rurais da divisa de Goiás e Tocantins, cantos indígenas, sermões de padres, crianças índias. Desviando da fácil assimilação que se pode fazer do estéreo e seus canais direito e esquerdo com metáforas de contradições e até mesmo as próprias posições políticas de esquerda e direita, Cildo traz para a “terceira margem do rio” dois sons mais pro- blemáticos: o depoimento de Zé Nem, índio que deixa sua sociedade para viver na cidade, e a pai- sagem sonora da procissão do Divino Pai Eterno. A romaria já é em si uma ambiguidade em sua his- tória, por ser um fenômeno religioso que emergiu às margens das instituições oficiais do Vaticano e que concretiza em caminhada e em som a fusão da crença popular com o texto religioso da instituição maior do Catolicismo. É fundamental ter em mente que o artista desempenhou diversas funções na reunião do material sonoro: se apropriou de material radio- fônico, entrevistou cidadãos tocantinenses ele próprio como um repórter, pediu depoimentos ao sertanista e a Zé Nem, gravou os eventos religiosos nos procedimentos do que se denomina field-recor- ding, gravou as canções sertanejas como na ativi- dade da etnomusicologia. A maioria dos procedi-
  • 30. 5756 mentos de Sal Sem Carne, ao contrário da natureza matemática/fonográfica de Mebs/Caraxia, se deu no mundo, no encontro com o outro, foi feita como um trabalho de campo. Quando Cildo Meireles visualiza o aparelho de áudio (vitrola, amplificador e falantes) como ferra- menta crítica, quando confia ao ouvinte essa media- ção possível na própria gravação de áudio, está tam- bém criticando a eficácia do registro fonográfico. Para expandir esse debate, Jacques Attali em Noise: The Political Economy of Music descreve a relação privilegiada que a gravação fonográfica possui com o poder. Ele se manifesta pelas diver- sas instâncias e estágios da gravação, desde dimen- sões políticas, como a seleção do que será gravado e reproduzido em escala de massa, como aspectos técnicos: tecnologias e aparatos de gravação, que, segundo Attali, são aparelhos coniventes com a manutenção do poder ou que podem ser aplica- dos esteticamente de forma a combatê-lo.7 É clara a posição do artista nesse debate, seu desejo de criar território auditivo para os que estão à margem do que é documentado ou difundido na indústria fonográfica e de criar o “ruído transformador” nos territórios que se sobrepõem. Ao mesmo tempo, Cildo consegue estabelecer distância suficiente de 7 ATTALI, 1985, p. 135 uma atitude panfletarista, quando abre sua obra para manipulações e possibilidades de mixagem inesperadas. O artista buscou uma universalidade sonora no conflito do Tocantins, símbolos que podem ser usados para traçar um panorama mais amplo: as interações do Brasil português e do Brasil indígena. Sal Sem Carne posiciona o ouvinte onde estaria o encontro desses vetores. O Massacre dos Índios Krahô é o fato que, na dimensão da informação oral do artista, assombra o ouvinte durante essa experiência como um espectro; se compreende a tragédia não ao remontar as condições específi- cas que a tornaram possível, mas em sua inevita- bilidade histórica. Nesse sentido, a tragédia é ao mesmo tempo um pressuposto e um desdobra- mento simbólico das oposições fundamentais apre- sentadas entre o branco e o indígena por meio do som. O ouvinte participante é posicionado em Sal Sem Carne como uma expectativa quase utópica de conversação entre as duas dimensões sonoras. É ali permitido ao ouvinte vislumbrar a dificuldade deste debate por meio da escuta e manipular com ela sua possibilidade. O encontro de forças e vetores continua a inte- ressar o artista no ano seguinte ao lançamento de Sal Sem Carne, quando desenha um novo projeto de gravação fonográfica chamado Rio Oir. O projeto
  • 31. 5958 consiste no registro de field recording dos encontros dos principais rios brasileiros, tornando o disco uma espécie de veículo para a experiência de tais vórtices, tão distantes da experiência de vida urbana. O disco só seria lançado em 2011 depois de feitas gravações na Estação Ecológica de Águas Emendadas (DF), no Delta do Rio São Francisco (AL), Foz do Iguaçu (PR) e no fenômeno da poro- roca que ocorre no Rio Araguari no Amapá. Concomitantemente à gravação de campo foi fil- mado um documentário chamado Ouvir o Rio: uma escultura sonora de Cildo Meireles, dirigido por Marcela Lordy, que registra a visita do artista aos encontros das águas e a captação profissional de som, feita por uma equipe apoiada pelo pro- jeto Ocupação do instituto Itaú Cultural. As cópias limitadas do disco foram prensadas em Londres para incluir um recurso decorativo indisponível nas fábricas do Brasil: no próprio corpo do vinil, há uma ilustração de uma espiral que se movimenta quando o disco é tocado. O lado B desse disco oferece uma interes- sante metáfora sonora: é uma coleção de risadas de diversas pessoas de idades variadas. Cildo Meireles entende a risada como um “momento de extensão e de abertura, de dispersão do ser, do ser se expandido para fora de si.” O que as diferentes faces deste disco recente oferecem ao ouvinte, segundo o artista, são experiências de concentração – expressada pela confluência dos rios, o encontro de forças – e dis- persão, tão manifestada na risada, onde a tensão psicológica se esvai.
  • 32. 61 Waltercio Caldas O museu, a vitrola e o regime de silêncio O disco fonográfico é um objeto da “necessidade diá- ria” que é a antítese exata do humano e do artístico, uma vez que o último não pode ser repetido e ativado quando desejado mas sim permanecer atrelado ao seu tempo e espaço (ADORNO, 2002, p. 278). Aqui a música não acaba ou deixa o silêncio ocupar os ouvidos quando a agulha da vitrola toca o inter- valo entre as canções: para começar não há música, mas há uma forma incomum de deixá-la ausente em um disco. Trata-se de A Entrada na Gruta de Maquiné, faixa do disco compacto de Waltercio Caldas. Quando se observa a face “A” desse disco, não se veem trilhas, faixas ou intervalos – mas sim um anel solitário gravado no vinil extremamente liso, sem os pontilhados característicos que lhe dão a vida musical. Somente pelo olhar já se levantam suspeitas de que essa superfície é absolutamente silenciosa. A desconfiança se concretiza: nada, ou quase nada se ouve por meio do disco. A agulha que toca o anel, decodifica o silêncio gravado.
  • 33. 6362 Deslizando nesse anel vazio de sons, a agulha não percorre a espiral que convencionalmente per- correria em qualquer disco. Sua trilha é um anel, um loop, que dispõe somente uma pequena faixa do tempo que a superfície do vinil compacto ofereceria ao ouvinte, e que tragicamente anula os mecanis- mos de abertura e levantamento do braço da vitrola. Repetidamente, a vitrola decodifica o silêncio. Virando para a face B desse disco que até agora não informou outro som que não de sua própria textura, o olhar identifica pontilhados musicais: ali está gravada a composição eletroacústica 3 Músicas de Sérgio Araujo, coautor do disco-objeto. Uma face para o silêncio, a outra para a composição musical; este é o disco Compacto Simples de 1980. Pensando nas duas faces desse objeto, a cola- boração entre o artista e o compositor propôs uma troca de papéis para a capa do compacto: o lado cor- respondente à composição de Araújo seria conce- bido por Waltercio e vice-versa. Sérgio, para a capa da face de Waltercio, propôs que fosse colado um miolo de rolo de fita adesiva, aquele anel feito de papelão, formando uma moldura para o corte circu- lar que exibe a etiqueta do disco, e lembrando o loop gravado no vinil. Waltercio conta que esse material é dificilmente encontrado ainda separado da fita ade- siva, o que o levou a alguns encontros com funcio- nários da empresa 3M para que cedessem parte dos rolos de papelão para a produção da capa das qua- trocentas cópias do Compacto Simples. Caldas tam- bém quis incorporar um objeto tridimensional para ilustrar a face correspondente a 3 Músicas de Sérgio Araujo. A rolha que é parte do objeto “Garrafas com Rolha”, concebido pelo próprio artista em 1973, foi feita na escala do furo central do disco e ali enfiada como se o tampasse, e, na verdade, só é possível reti- rar o disco da capa se ele for “destampado”. A gruta que deu título à faixa de Waltercio é um sítio geológico no município de Cordisburgo (MG). A gruta de Maquiné chamou atenção do artista jus- tamente pela desproporção entre sua entrada – uma rachadura baixa e estreita na rocha – e seu interior catedrático. Segundo Waltercio, as dimensões des- proporcionais entre entrada e interior da gruta de Maquiné funcionam como uma metáfora para seu disco no sentido em que “produzem um lugar”; ou seja, o pequeno anel gravado no vinil que corres- ponde a um breve instante é uma espécie de porta de entrada para outro lugar, onde o tempo não necessariamente se comportará da mesma forma, ou onde se tem uma experiência que quer demons- trar alguns comportamentos do infinito. Aparece assim um hiato entre a pequena entrada e enorme interior da gruta, entre o anel gravado no vinil e o som infinito que este produz, e este hiato é um espaço em si.
  • 34. 6564 A Entrada seria então, pensando nas particu- laridades da escuta de um disco de vinil, um objeto capaz de sensibilizar o espaço já que suspende o desenvolvimento do tempo do disco. A Entrada poderia reconfigurar o hábito de escutar uma gra- vação fonográfica como um registro de andamento “para frente” ou de uma duração; ela cancela essa sensação pedestre, a sensação de caminhar pelo tempo. Por isso a percepção, segundo o artista, é direcionada para o campo, o próprio espaço que envolve o ouvinte do disco. Mas se existe algum fator que interfere no comportamento infinito do disco compacto, são alguns felizes acidentes, como falhas, riscos e poeira que registram atalhos nos quais a escuta consegue entender o período da repetição. A menção do jazz São tantos os encontros históricos do jazz com as artes visuais que se poderia escrever por meio deles uma história da arte do século XX alternativa, descre- vendo correspondências formais, influências e vitali- dades sociais que colocaram artistas visuais e músicos em um interesse de espontaneidade rítmica comum. Antes mesmo do conhecido envolvimento dos expres- sionistas abstratos norte-americanos com a cultura beatnik e com a cena musical do jazz na década de 1950, Piet Mondrian – em Paris de 1927 – já tentava criar paralelos entre seu neoplasticismo e o gênero: Livre de convenções musicais, o jazz cria quase que um ritmo puro, graças à intensidade de seus efeitos e contrastes sonoros. O ritmo do jazz já lhe proporciona uma ilusão de “abertura”, de liberdade. O neoplasti- cismo, por outro lado, exibe um ritmo efetivamente livre da forma, um ritmo universal. […] Mais impor- tante que tudo, o jazz cria o ritmo aberto do bar. O jazz aniquila. Tudo que abre executa uma ação aniquilante. Isso liberta o ritmo da forma e de tantas outras coisas que são forma sem ser reconhecidas como tal. Cria-se então um refúgio para aqueles que desejam se libertar da forma (MONDRIAN, 1927, p. 217). Piet Mondrian só veria décadas depois, quando se muda para Nova Iorque, o estabelecimento das convenções do jazz e a ascensão mundial de suas estrelas, que não mais fariam suas performances em pequenos cabarés privados, mas dentro de um crescente e pulsante mercado fonográfico. Por meio dessa economia se propagaram mundialmente talentos como Charlie Parker, Ella Fitzgerald, Duke Ellington, Thelonious Monk e Miles Davis, e nela se fabricaram suas lendas. É também através da força dessas narrativas que o jazz pode se incorporar às artes visuais, por exemplo, pelo uso de metáforas e citações, algo que ocorre com uma escultura particular de Waltercio Caldas de 1998. Nela o jazz não soa: a escultura Thelonious Monk faz a estrutura de aço inoxidável
  • 35. 6766 tocar a pele de coelho que lhe serve de base, pon- tuando-a com três pequenas chapas que lembram etiquetas com a gravação: “THELONIOUS MONK”. É inevitável a sensação de mistério e a curiosidade que a peça desperta; por que unir mundos tão diferen- tes? Como é possível trazer Thelonious Monk para tão perto de um objeto sem a ajuda de sua música? Adolfo Montejo Navas no artigo Plástica Sonora Brasileña considera a escultura um exemplo do uso do “silêncio como matéria”, percebendo-a também como uma espécie de ilustração das har- monias dissonantes que costumam ser identificadas com o estilo do pianista: Não poderíamos dizer que muitas das esculturas do artista são acentuações do silêncio? Elas não tratam sua invisibilidade como transparência? Uma transparência que é também processo de trabalho. [...] Nós gostaríamos de enfatizar Thelonious Monk (1998) como uma referên- cia emblemática nesse aspecto, onde o valor assimétrico das notas do pianista sui generis do bebop aparece acen- tuado em seus valores como intervalos, como se a música fosse espaço em movimento (NAVAS, 2004, p. 65). Falta somente compreender o papel da indústria fonográfica para que essas dissonâncias do pianista soem com tanta força na memória do observador: o nome do jazzista, de tão repetido e cultuado, vira uma espécie de vetor dentro da escultura de Caldas. O artista, no entanto, afirma tentar se desviar do recurso da metáfora em uma espécie de “missão impossível” que quer revelar objetos no “momento antes de seus nomes”. Thelonious Monk, o músico, poderia desempenhar na obra de Waltercio um papel anterior ao de seu nome somente se trans- formado em vetor ou em uma função derivada de suas sonoridades. Ficará assim entre a abstração e a representação, entre silêncio e discurso, se for trans- formado em uma espécie de fonema.1 Thelonious Monk, a escultura, desvia da metáfora na medida em que deseja o descolamento entre músico e música, e consegue demonstrar uma forma simples para transfigurar uma lenda do jazz em vetor. O espectador que observa o objeto, já conhe- cendo a música de Thelonious Monk, é convidado por esse objeto a remexer memórias perceptivas mais anteriores aos nomes, memórias incorporadas, físicas e raramente silenciosas. A estranha evidência do silêncio Navas não foi o primeiro ou único crítico a res- saltar a qualidade silenciosadosobjetosdeWaltercio Caldas. Aliás, silêncio e vazio são dimensões recor- 1 WEISS, 2008, trata justamente das operações miméticas entre lin- guagem e sonoridade. Entre diversos questionamentos do artigo se destaca a hipótese de que a diferença entre mímese e abstração é uma aporia estética comum a todas as artes, e por meio dessa diferença aconteceriam transposições formais entre diferentes formas de arte, como por exemplo, artes plásticas e música.
  • 36. 6968 rentes em diversos textos de diversos autores da obra do artista. Por que é necessário reafirmar a natureza silenciosa dos objetos, natureza comum, pode-se dizer, à maioria dos objetos de arte? Qual é o valor que está em jogo e por que o silêncio de suas esculturas é especial na visão que os críticos cons- troem para a produção de Waltercio Caldas? Compreender essas metáforas e a que exata- mente servem implica considerar o silêncio como situação utópica, algo que o ouvido humano a rigor nunca vivencia, uma experiência perceptiva que pode ser somente imaginada ou ponderada: Pois, quando, depois de convencer a si mesmo por igno- rância que o som tem um claramente definido oposto, o silêncio, desde que a duração seja a única característica do som que pode ser mensurável em termos de silêncio, pois qualquer estrutura válida envolvendo sons e silên- cios deve basear-se, não da forma ocidentalmente tradi- cional, sobre a frequência, mas justamente sobre a dura- ção, a pessoa entra numa câmara anecoica, tão silenciosa quanto tecnologicamente possível em 1951, para desco- brir que se ouve dois sons de nossa própria fabricação não-intencional (a operação sistemática dos nervos, a circulação do sangue), a situação que este claramente se encontra não é objetiva (silêncio-som), mas sim subje- tiva (sons apenas), os intencionais e os outros (chamados de “silêncio”) não intencionais (CAGE, 1961, p. 12). Cage,emsuaafirmação(queédefatoumrelato, pois de fato entrou em uma câmara anecoica2 ), 2 CAGE, 1961, p. 167. apresenta uma noção de silêncio dependente de sua condição subjetiva, pois na vida existe somente uma condição possível: sons apenas. O “ruído” seria o conjunto de ruídos intencionais e indesejados. O silêncio seria construído a partir de sons não inten- cionais, reforçando assim sua condição “impura”, dentro dessa faixa de tolerância perceptiva aos sons acidentais. Mas abraçando o caráter utópico e não a impu- reza do silêncio, muitas decisões curatoriais foram tomadas e poderia-se até dizer que muitas políticas públicas e culturais foram constituídas no século XX. O museu é um espaço que tradicionalmente privilegia o silêncio sobre o ruído. Um exemplo efi- caz para a defesa do silêncio como forma de pro- teger a experiência ótica está no texto “A Estranha Evidência do Silêncio”, de Paulo Sérgio Duarte para o catálogo de Waltercio Caldas publicado nos anos 2000, discutindo sobre essa qualidade nas salas de exposição: Na obra de Waltercio Caldas, a reconstrução do pra- zer do olhar passa, por isso mesmo, pela integração do silêncio e pela forma enigmática. […] Antigamente, por princípio, toda obra de arte se calava. Mas será que precisamos lembrar certas obras cinéticas, seus motores e seus mecanismos, para saber que o ruído do mundo, há muito, invadiu de fato as salas de exposição? Faz mais barulho, ainda, a invasão brutal dos ícones da sociedade de consumo, incorporados cinicamente
  • 37. 7170 ou mesmo tratados criticamente.[…] Por isso, a obra de Waltercio restaura o direito ao silêncio. Tal como o vazio expressivo, esse silêncio – que era comum a toda obra de arte – se estabelece como um mais-silêncio. Quando se quebra e sua fala se manifesta, ela é baixa, no máximo sussurra a solidão, sem lamento ou melan- colia, como nas naturezas-mortas de Morandi. Antes satisfeito com essa condição de existência, o silên- cio, ou a fala baixa, se apresenta como um “estado de imagem”, para usar uma expressão do próprio artista. Conquistado ao longo do processo de construção da obra, o silêncio torna-se tanto mais denso quanto mais o trabalho se vai despregando de qualquer retórico embutida, quanto mais se torna independente de refe- rências externas e impulsiona uma inteligência pura- mente ótica (DUARTE, 2000, p. 85). O silêncio que descreve Paulo Sérgio Duarte é a consequência de um desenvolvimento formal bem- sucedido(“osilênciotorna-setantomaisdensoquanto mais o trabalho se vai despregando de qualquer retó- rico embutida, quanto mais se torna independente de referências externas e impulsiona uma inteligên- cia puramente ótica”). Está essencialmente ligado ao “prazer de olhar”, além de servir muitas vezes de ana- logia para o vazio (“Tal como o vazio expressivo, esse silêncio...”). Tal silêncio é a condição perceptiva para a arte abstrata que emerge no Modernismo, e que se contrapõe aos atos discursivos que eram possíveis no espaço tridimensional da pintura representativa.3 3 RANCIÈRE, 2001, p. 16. O silêncio como analogia do vazio reaparece no texto A Consciência do Intervalo, de Agnaldo Farias, aqui, mais próximo à ideia de pausa musical: É uma profunda consciência das possibilidades do intervalo entre as coisas o aspecto diferencial da obra de Waltercio Caldas. Pode-se chamá-lo de pausa, silên- cio, oco, parênteses, vazio. Cada objeto serve de ponto, onde o olho se atraca para se lançar na prospecção do invisível e voltar com novas notícias do que parece ser a expansão do raciocínio escultórico (FARIAS, 1996, p. 76). O silêncio-pausa de Farias, assim como fez Ilse Kuijken (“Essas esculturas estão em seu espaço como o ar na música”)4 encontra seu lugar numa espécie de ritmo criado pelo raciocínio formal de Caldas. O ritmo escultórico do artista foi também ouvido por Paulo Venâncio Filho: [...] Simples como o silêncio mais baixo onde se ouve os infrassons do silêncio. E o silêncio vem de todos os lados em precisos ataques de sintonia. Um silêncio de aço, simplesmente. Desta forma lacunar é sólida na sua frequência mais extrema. Pois só inúmeras camadas de vazio podem auto-sustentar uma desocupação do total espaço (Jorge Oteiza) para desvelar e oferecer o espaço. Ele então se faz vivo e pulsante, em síncopes desritmadas e articuladas. Fica a expectativa de algo que demora, uma espera, suspense natural (VENÂNCIO FILHO, 2008, p. 49). 4 In: KUIJKEN, 1992.
  • 38. 7372 Paulo Venâncio Filho cria uma possibilidade interessante para o silêncio, um silêncio cujos “infrassons” podem ser ouvidos em “ataques de sintonia”, novamente dentro da alusão ao vazio, mas que aqui assume um caráter impuro e musi- cal, ainda que reafirme o controle do artista sobre a matéria silenciosa com a precisão que se assemelha à leitura de uma partitura. Uma metáfora mais ruidosa foi feita pelo crí- tico Lorenzo Mammi: A ciência acústica conhece um fenômeno chamado som de combinação, ou terceiro som. Se duas notas de alturas diferentes, mas relativamente próximas, são tocadas simultaneamente, suas frequências entram em choque e produzem uma terceira nota claramente audí- vel, equivalente à diferença entre elas. Embora tenha sido descoberto no século XVIII, até hoje não se sabe se o terceiro som é uma realidade física ou uma reação neurológica. Por analogia, poderíamos pensar nos tra- balhos de Waltercio Caldas como objetos de combina- ção, ou terceiros objetos. Neles há grande proximidade, e portanto choque, entre projeto da obra e sua pre- sença física.[…] Como duas oscilações próximas mas diferentes que entram em fase, pensamento e matéria criam assim uma perturbação, uma vibração secundá- ria, que não pode ser reconduzida, embora seja, com toda evidência, um reflexo delas. A substância do tra- balho de Waltercio está justamente nessa vibração, algo que não é corpo nem ideia, algo que não enxergamos na obra, mas que podemos intuir através de, ou graças a ela. Onde está a obra, nesse caso? Não apostaríamos em sua realidade física, tampouco em seu caráter de mera ilusão dos sentidos (MAMMI, 1995, s.n.). Como uma espécie de substrato, o fenômeno do som de combinação é uma metáfora para o produto do choque entre matéria e pensamento, segundo Mammi. Ainda que boa parte de suas considerações possa também ser aplicada a A Entrada na Gruta de Maquiné, sua tentativa de materializar ou propagar o silêncio e colocar o ouvinte em direto contato com a “substância”, não existem menções à obra. Ruído transformador Parece que existe uma tradição de o artista fazer disco assim como ele realiza também filmes. Mas a questão não é a história do disco, mas do processo industrial. O artista utiliza-se do disco como uma das possibilidades da linguagem. No meu caso, houve também a questão da montagem industrial, quando visitei uma linha de produção. O meu interesse foi criar uma ironia. A pro- dução industrial expele quantidade. Ao fazer esse disco minha ideia era a de provocar, em relação à indústria, sua própria dúvida. Como se a indústria se perguntasse sobre si mesma. A questão desse disco não é a de um artista plástico fazendo-o. É também a de um músico que realiza um trabalho de arte. O disco trabalha nessa tensão. A questão de ouvir ou de ver. Ele pretende rom- per com os limites do visível e do audível (Waltercio Caldas em entrevista In: COUTINHO, 1981, s.n.).
  • 39. 7574 Na entrevista que deu a Wilson Coutinho, na matéria publicada em 1982 no Jornal do Brasil, Waltercio Caldas traz à luz outro aspecto de seu disco compacto, além do silêncio de sua mídia e da forma pouco convencional de sua gravação: sua ori- gem industrial. Como veremos em Mebs/Caraxia e Sal Sem Carne de Cildo Meireles, o artista posiciona- se criticamente dentro do ambiente de produção de seu objeto sonoro, e tenta por meio dele modificá-lo. Coutinho narra que foi preciso reprogramar o sistema, transformá-lo, para que o compacto fosse produzido.5 O aparato dessa indústria, ainda que para uma pequena tiragem, teve de se converter para acomodar uma ideia externa e que pouco segue as logísticas estabelecidas então, na produção e venda da música gravada. Isso foi preciso porque as máqui- nas que gravam os discos de vinil convencionais o fazem em forma de espiral, e não de anéis; assim, foi preciso adaptar a engenharia de sincronia entre a base rotatória e a agulha de gravação que cria os pontilhados e sulcos na superfície do disco matriz. Não estaria Waltercio, assim, em sua A Entrada da Gruta de Maquiné, além do silêncio, provocando uma espécie de ruído dentro da indústria? Não seria o disco a intencionalidade que rompe o que é comum dentro da indústria fonográfica? Uma espé- cie de ruído institucional: 5 COUTINHO, 1981, s.n. Uma rede pode ser destruída por ruídos que a atacam e a transformam, se os códigos estabelecidos forem inca- pazes de os normalizar e reprimir. Ainda que a nova ordem não esteja contida na estrutura da antiga, ela não é um produto do acaso. Ela é criada pela substitui- ção de antigas diferenças por novas. O ruído é a fonte dessas mutações nos códigos estruturais. A despeito da morte que ele contém, o ruído traz em si uma ordem, traz em si informação nova. […] A presença de ruído faz sentido, traz significado. Faz possível a criação de uma nova ordem em outro nível de organização, de um novo código em outra rede (ATTALI, 1985, p. 33). Para Attali, o regime da música gravada – as políticas da indústria fonográfica – encontrou, em sua história, meios de silenciar o ruído transforma- dor e neutralizar sua ameaça em diferentes instân- cias. Em sua dimensão pouco mutável, a gravação elimina o risco da performance e da incerteza do erro – o ruído. Na sua distribuição e presença na sociedade, a música gravada silencia pela homo- geneização auditiva que promove. Sua infiltra- ção na vida pública e privada é, para Attali, “um monólogo da instituição”, pois é possível somente por meio de uma centralização de poder que sele- ciona e manipula o que será gravado, produzido em escala massiva e reproduzido à exaustão. O ruído poderia ser, entre tantas outras coisas, o que escapa a esse “mundo administrado”. Não faltam exemplos na atualidade do que pode se comportar
  • 40. 7776 como ruído transformador das estruturas de poder, sendo a pirataria e a produção independente os mais evidentes. Dentro dessa noção do ruído institucional, a ideia de Waltercio se torna ruído – um distúrbio da ordem – no momento em que deve ser concretizada por meios pouco convencionais, em um ambiente de rígida organização. O aparato industrial, ideal- mente a salvo de erros e desvios em suas inúmeras padronizações de formato, contamina-se – ainda que de maneira temporária – com o ruído silencioso de Waltercio Caldas, que o obriga à reprogramação. Apesar de Attali afirmar que o silenciamento almejado pela indústria fonográfica só pode ser totalmente compreendido se levarmos em conta a cadeia do mercado fonográfico inteira, que passa pela gravação, sua distribuição, compra e inserção no mundo público e privado, A Entrada na Gruta de Maquiné, na pequena abertura que se formou na indústria (em seu cerne, seu aparato), quis colo- car em dúvida sua ilusão de segunda natureza. Nas palavras de Caldas: “O artista trabalha sobre essa [segunda] natureza. Mas coloca-a em dúvida. Esse processo não é representacional. A indústria tem um vínculo com uma suposta veracidade. Ele se pretende se fundar como verdade.” A forma inco- mum de A Entrada na Gruta de Maquiné deixa visí- vel que os padrões da indústria são legitimados por decisões políticas, técnicas e econômicas que ten- dem a priorizar as estéticas que se alinham a seus esquemas de lucro e eficiência. Propagando o silên- cio pelo vinil, será possível escutar ao redor e no barulho do mundo tudo o que não se compreende nessa cadeia.
  • 41. 79 Chelpa Ferro A abertura democrática Uma nova e grave crise se alastra no mercado fonográfico brasileiro no início da década de 1980 como consequência da instabilidade econômica que provocou índices de inflação de até 100% ao ano. As consequências foram devastadoras para as gra- vadoras nacionais e internacionais, que sofreram fusões, falências (como a Ariola, que foi comprada em 1981 pela Polygram)1 e acabaram por reformu- lar suas estratégias de mercado, redirecionando definitivamente a atuação cultural da indústria fonográfica no Brasil: se antes já era questionável a maneira pela qual a gravação fonográfica dava visi- bilidade a uma determinada cultura musical, uma vez que qualquer manifestação artística deveria se adaptar aos padrões de mercado ou já teria estes no horizonte durante o processo criativo, a partir dos anos 1980, este pequeno grau de experimentação se 1 VICENTE, 2002.
  • 42. 8180 extingue.2 As decisões, como o catálogo de artistas, lançamento de novos artistas ou de novos álbuns de músicos consagrados e outras produções, passariam a ser feitas pelo departamento comercial e não mais o artístico, segundo Ana Maria Bahiana no artigo d’O Globo de 1982, O tempos mudaram e ‘acabou a brincadeira’. Disco agora é negócio para profissionais. O maior nível de racionalização e conser- vadorismo das gravadoras frente ao pessimismo da crise fez com que um volume muito maior de lançamentos internacionais circulasse no país3 ao mesmo tempo em que haveria cortes brutais de até 75% do elenco de artistas nacionais.4 Esse processo também acelerou a ascensão das bandas do BRock, o rock brasileiro, cujos principais representantes eram bandas como Paralamas do Sucesso, Blitz, Kid Abelha, Marina Lima, Titãs, Legião Urbana, Lobão e Barão Vermelho, que, segundo André Midani, foram um fator determinante para a superação da queda de vendas nessa década. A recuperação efe- tiva da indústria fonográfica só se daria em 1986, quando atingiu o maior nível de produção até então. Com a abertura política da década de 1980, o cerceamento repressor do espaço público se atenua, 2 MIDANI, 2002, p. 216. 3 MIDANI, 2008, p. 201. 4 VICENTE, 2002. possibilitando a realização de eventos que promo- veriam tais bandas que pouco compartilhavam das ideias tropicalistas das duas décadas anteriores. Nestas ocasiões, intenso o encontro de artistas de diversos campos como o teatro, a música, a poesia, a dança e as artes visuais em eventos como o Circo Voador no verão de 1982, realizado na praia do Arpoador pelo produtor Perfeito Fortuna. A atitude desta nova geração de artistas – em especial a de artistas visuais – não mais refletia a politização do discurso da antiarte dos artistas da década de 1970, restaurando-se a atitude artística de “voltar-se para o interior”5 para fortalecer nova- mente o papel do artista individual que não reco- nhece como um dever o desenvolvimento de deba- tes reconhecidos pela história da arte de vanguarda brasileira.6 Essas serão trilhas sonoras que alimentaram o que Heloisa Buarque de Hollanda chama de “des- montagem da ditadura”; o tom era libertário, pro- punha-se remontar o indivíduo. A juventude dessa nova década propõe viver a democracia em um espírito atualizado do desbunde7 da contracultura da década anterior: esse agora perpassaria os bens 5 POINSET apud MORAIS, 1984, p. 224. 6 GUINLE, 1984, p. 233. 7 “Deriva da circulação do modelo hippie na cultura jovem dos grandes centros urbanos, sendo relacionado ao consumo de
  • 43. 8382 de consumo, o pop, a moda, a despedida do impe- rativo de criar utopias e glórias póstumas na arte8 e na música popular. É nessa conjuntura em que dois dos membros de Chelpa Ferro, Barrão e Luiz Zerbini, iniciam car- reira no circuito de artes visuais no Rio de Janeiro. A cidade nessa década também acabou propiciando encontros de artistas de diversos campos como o teatro, a música, a dança e as artes visuais com even- tos como o Circo Voador no verão de 1982, reali- zado na praia do Arpoador pelo produtor Perfeito Fortuna. Nesse lugar, os músicos do novo rock bra- sileiro, que pouco tinham das ideias tropicalistas das duas décadas anteriores, encontravam a geração 80 de artistas visuais, atores de novas companhias de teatro, como Asdrúbal Trouxe o Trombone, e escritores como Fausto Fawcett e Ricardo Chacal. Chacal foi o responsável por reunir Chelpa Ferro pela primeira vez como “banda” em 1995 – não em um contexto de artes ou de música, mas para um evento de poesia. Longe da galeria e do drogas, à crença mística orientalista e ao ideal do ‘pé na estrada’” (COELHO, 2010, p. 217). 8 MORAIS, 1984, p. 226. Algumas canções de sucesso da época sugerem esse espírito: “Eu vejo a vida mais clara e farta” (LULU SANTOS, Tempos Modernos, 1984); “Meus heróis morreram de overdose” (CAZUZA, Ideologia, 1988); “Mas Vital comprou a moto e passou a se sentir total” (PARALAMAS DO SUCESSO, Vital e Sua Moto, 1984). museu, no palco do teatro Sérgio Porto, Barrão, Zerbini, Sergio Mekler e Chico Neves fizeram sua primeira performance no CEP 20.000, o Centro de Experimentação Poética, um dos eventos de poesia (ou com a desculpa da poesia para se expandir para praticamente todas as linguagens artísticas) mais conhecidos e celebrados pela comunidade artís- tica do Rio de Janeiro. O ambiente experimental e propositivo do CEP 20.000 acolheu as vontades do grupo de fazer o que estivessem “a fim de fazer [...], sem preocupação que isso tenha coerência com o que fizemos semana passada.”9 Barrão trabalha no início de sua carreira com esculturas feitas de máquinas acopladas; Zerbini, paulista que muda-se para o Rio na década de 1980, se estabelece como artista trabalhando principal- mente com a pintura; Sérgio Mekler é editor de cinema e TV; e Chico Neves10 é produtor musical, iniciando em 1978 uma carreira que teve produções de sucesso no mercado da música popular brasi- leira, como álbuns dos Paralamas do Sucesso, Jorge Mautner, Skank e Arnaldo Antunes. Como apontaram Hermano Vianna e Moacir dos Anjos, todos os membros do Chelpa Ferro lidam com procedimentos de fragmentação, edição 9 Depoimento de Barrão no documentário Chelpa Ferro (cf. NADER, 2009). 10 Chico Neves deixou o grupo em 2001.