1. Capítulo 1
A CARNE HUMANA
Rio de Janeiro, 1816
Cunhambebe, o primeiro Rei do Brasil, comera cinco mil
portugueses. Cinco mil perós, como diziam os índios. No fundo não
foi surpresa ter-me descoberto, em pleno Rio de Janeiro,
descendente direta do voraz cacique tupinambá. Eu, Joséphine
Pechêur, a Madame de Sade, que durante meus 53 anos de
existência na França cometera prostituição, adultério, corrupção de
menores, sodomia, ocultação de cadáver, tráfico de drogas e indução
ao vício, traidora e assassina de meu mais fiel amante e sócio, tinha
a quem puxar. Quem sai aos seus não degenera. Não sem razão meu
primeiro mentor fora o Marquês de Sade.
Imaginei os devorados, cabeças esmagadas às milhares, braços
e pernas arrancados, tripas e miolos humanos cozidos. As fogueiras,
os sussurros, os arrotos da mastigação de pedaços às vezes bem
pouco tenros de tão singular iguaria, as brigas entre as crianças,
disputando os nacos mais macios dadas pelos adultos para que
fossem se acostumando desde cedo ao sabor do inimigo. “O Homem
é o Lobo do Homem, e às vezes Lobinho”, refleti, fiel ao meu estilo
acurado, mas vez e outra pouco original de pensar. Quando me
aprofundei no canibalismo descobri, entre suas peculiaridades, a
especial predileção de Cunhambebe por polegares humanos, que
segurava pelo osso comendo as partes carnudas da mão, como as
coxas de galinha devoradas aos montes pelo Príncipe Regente, Dom
João.
A revelação de minhas verdadeiras origens começara havia algumas
semanas, em uma típica manhã carioca, de céu muito azul e calor
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2. sufocante. Tínhamos pouco mais de seis meses de chegadas de Paris.
Odette entrou em meu boudoir com ar enfezado:
- Aí está uma índia velha para falar com Madame. Tentei
adiantar o assunto, mas ela teimou a só falar à patroa, bugra
atrevida. Em todo caso, quer atendê-la? - perguntou.
Em todos esses anos em minha companhia, primeiro como
prostituta, depois como procuradora de novas moças para meu
estabelecimento, Madame de Sade, do qual se tornou gerente, minha
fiel escudeira nunca conseguiu esconder o ciúme de qualquer ser
humano com o qual pudesse dividir minha atenção.
- Estás cada dia mais velha e rabugenta – brinquei, ao ver seus
lábios já murchos cerrados em um muxoxo de desdém. - Traz-me a
índia. Como se chama?
- Iracema – respondeu, ainda arrufada. - E é difícil entender
claramente o que diz, a bugra mistura a língua da terra com o tal
tupi.
Abreviei a conversação:
- Pois bastou para compreenderes que ela só falaria comigo e
vieste trazer-me o recado, poderei entendê-la muito bem.
Logo vi que Odette usara de sua proverbial má-vontade, regida
pela eterna necessidade de monopólio de minha afeição, ao
classificar Iracema de velha rabugenta. Em parte era verdade,
decerto a índia tinha a idade do tempo. Tudo nela era velho, com
exceção dos olhos, negros como asa da graúna, brilhantes como os
de uma cunhã em seus mais verdes anos. Pequena e curvada, trazia
um vestido de algodão cru que, fervido no chá verde, alcançara belo
tom de sépia. Apesar de muito asseada, o estado da roupa, comum às
criadas brasileiras revelava, mesmo aos pouco perspicazes, tempos
de mau passadiço. O olhar desassombrado, porém, não denotava
sombra de vassalagem. Gostei da índia.
- Iracema, por que insististe em ver-me, ao invés de falar a
Odette, que se ocupa de meus cuidados com a criadagem?
- Sua criada iria tomar referências com as nhanhãs da
redondeza, como todas fazem. E todos iriam mencionar minha fama
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3. de canibal e aí nhanhã nutria por mim a mesma repulsa das outras
nhanhãs brancas.
A palavra canibal caiu como tocha acesa em paiol de pólvora.
Despertar minha curiosidade sempre foi uma das melhores formas
de atrair-me a atenção. A índia não poderia ter arrumado melhor
tática. Não pude deixar de notar seus dentes, afiados como os da
piranha, o voraz tigre dos rios brasileiros, da qual tomara
conhecimento em uma visita ao mercado da Baía dos Mineiros, o
grande ponto de abastecimento do Rio.Turbilhonaram-me na mente
as descrições dos 120 Dias de Sodoma do Marquês de Sade de
suculentos filés de nádegas de supliciados, a dar como mais leves e
saborosos os arrancados a dessangrados vivos. E os cristãos, tontos,
não devoram seu próprio Deus durante a missa? Forcei a concentrar-
me na ruína que diante de mim se apresentava, a ostentar a
majestade de um castelo gótico em escombros.
- E o que te faz pensar que seja eu diferente das outras nhanhãs
brancas? – perguntei, copiando Iracema, acrescentando a palavra
indígena no meu precário português.
- Porque a senhora é estrangeira, como se percebe por sua
adorável fala, parecida com a de meu antigo patrão, o Conde de
Castide, que voltou para a França.
-Ah, então trabalhaste com um francês. E quais eram tuas
ocupações?
- Lavava, passava e cozinhava. Além disso aprendi a tecer.
Meu patrão era um sábio com quem muito aprendi, conhecia mais
dos índios que eu mesma. Nhanhã branca também tem ar de sábia.
Agradeci de cabeça o cumprimento, fazendo sinal de que
prosseguisse.
- Como a senhora também é mulher de sabedoria, não vai se
deixar levar por intrigas e mesquinharias. Índio é animal inferior
para perós e brasis. E por me dizerem canibal só consigo colocações
miseráveis. Os curtos anos bons foram com meu Conde de Castide,
que me queria levar em sua volta.
- E por que não foste?
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4. - Imaginei, como na França tinha família e mulher, uma
senhora a dar-me ordens, atazanando-me a vida. Aqui entre tantos
criados de sua casa, por exemplo, eu ia ser apenas mais uma.
Sorriu-me com confiança, os caquinhos de dentes de piranha a
contrastar com o brilho de seus olhos, veludo negro dos céus
estrelados do Atlântico Sul. Havia ainda um porém:
- Por acaso sabes quantos anos tens? Apesar de teu passo
desenvolto me pareces muito fatigada para trabalhos domésticos,
que sei pesados por minha própria experiência.
- Preciso de um teto que abrigue esses velhos ossos – declarou,
num assomo de sinceridade. - Não sei minha idade, nasci na selva,
onde o passar do tempo impõe respeito. Devo beirar 80 invernos,
pelas contas dos brancos, mas conservo o olhar afiado do gavião e
um tear de madeira com o qual faço alguns panos, veja estes aqui.
As mãos estendidas como garras de ave de rapina, finas e
retorcidas, exibiam peças que poderiam perfeitamente ter vestido
Helena de Tróia, rústicas e de linda trama. Tinham leve odor de
ervas. Mas não conseguia mais refrear-me. Em toda minha vasta
vida aprendi, onde há fumaça há fogo. “Nada funciona tão bem
quanto os lugares comuns”, pensei. Indaguei sem rebuços:
- Tua obra é bela, mas de onde vem tua fama de canibal? Se
fores sincera, sei que posso fiar-me em ti, pois não abrigo desleais.
Mas se mentires o saberei, não duvides.
Iracema devolveu-me um olhar límpido de milhares de anos de
tradição guerreira, mas nada me preparou para a revelação que o
acompanharia:
- Minha tribo foi uma das últimas que comiam carne humana,
também dela fiz uso, é verdade. Infelizmente, Nhanhã, os índios não
são mais os mesmos, não se alimentam mais nem do heroísmo dos
inimigos nem com o amor dos parentes, trocaram tudo isso por carne
de vaca.
Contive o riso diante desse comentário típico de todas as
velhas rabugentas que consideram seus tempos de juventude o
melhor período da humanidade, quando os namoricos eram mais
inocentes, havia menos doenças, os homens eram mais puros, os
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5. ares mais benfazejos, a criadagem menos atrevida, e assim por
diante. Seguindo essa toada, a índia octogenária lamentava a
nobreza da raça perdida com o fim do canibalismo. A conversa
estava boa, mas o sol já andava alto e eu tinha afazeres.
- Ficarás aqui. - Chamei Odette e determinei que desse um
quartinho no fundo do quintal, separado das outras serviçais. Pelo
sim pelo não, era bom não deixá-la muito próxima da carne tenra de
minhas jovens escravas...
- Madame, vou lhe trazer os apontamentos do Conde, falam de
minha tribo e do maior dos caciques, Cunhambebe.
Sem atentar ao nome, respondi simplesmente:
- Traz o que quiseres.
Na manhã seguinte, um escravo ajudou Iracema a recolher seus
parcos haveres de um quartinho úmido, onde vivia ainda do resto do
dinheiro legado pelo antigo patrão. No final da tarde fui verificar sua
instalação. A velha fiandeira aproveitava o resto de luz do
entardecer. Admirei a agilidade dos dedos de harpia a tecer tramas.
Elogiei os grandes vasos bojudos decorados com ricas pinturas
geométricas, com que guarnecera o quarto e ela explicou usar urnas
funerárias para plantar flores.
- Estes são potes bons, o barro era moldado pelos homens. As
mulheres pintavam as linhas pretas, que são labirintos. Os maus
espíritos da natureza neles se perdiam, não conseguindo alcançar os
ossos protegidos. Hoje desses índios moços só saem vasos
vergonhosos, malfeitos e malpintados. Parece que as mãos
habilidosas ficaram enterradas no passado de glória, tornado
presente de miséria.
Encerrei a conversa, sem paciência para seu ressentimento em
relação ao jovem ano de 1816. Dias depois, entediada pelo calor do
meio-dia, que pouca margem de atividade dava, resolvi voltar ao
tugúrio da índia, o canto mais fresco da casa pelas urnas funerárias
transformadas em útero para a viva seiva das plantas. Queria
divertir-me e soltar-lhe a língua. Havia separado uma garrafa de
aguardente. Eu nunca a vira beber, mas já me informara que era
useira e vezeira desse álcool forte destilado da cana, como de resto a
5
6. maioria dos índios da cidade. Odete, que tinha feito a intriga das
libações de Iracema, fez cara feia ao dar com a garrafa:
- O que faz Madame com essa pinga na mão em pleno sol do
meio-dia, logo a senhora, que sempre primou pela temperança?
Garanto que vai fazer um agrado àquela índia velha, agora é como
se não existisse mais, logo eu, fiel capacho que sempre fui.
Evitei responder-lhe diretamente e apreciei a sagacidade de
minha sempre astuta companheira. “Pinga” era palavra que entrara
na moda recentemente entre os próprios brasileiros e ela, eterna
procuradora, já descobrira o último jargão.
- Odette, sempre com teus ciúmes bobos, sabes que para mim
és minha mais fiel escudeira. Avia-te, vai à Baía dos Mineiros
procurar peixe para nossa ceia, se tardas não conseguiremos nada.
Livrando-me dela, penetrei o covil cheio de sombra e frescor.
- Eis aqui um agrado para aliviar-te o calor, minha cara – disse-
lhe gentilmente, exibindo a garrafa.
Ao constatar a transparência do regalo, os olhos negros
brilharam como dois tições.
- Obrigada, generosa cunhã – disse-me, arrebatando-a de
minhas mãos. Ao perceber-me a fitá-la com curiosidade, refreou-se.
- Beba, para isso a trouxe - encorajei-a.
Não era preciso. Metade do conteúdo evaporou-se na goela
enrugada da índia, como tragada pelo calor sufocante do dia. Ela
tolheu-se de novo em minha presença, como a desculpar-se pela
evidente avidez.
- Madame me desculpe, mas não consigo mais mascar
mandioca para meu próprio cauim, meus cacos de dentes ferem
minha carne em vez de triturar a raiz.
- Não te preocupes, Iracema, sei bem o que é envelhecer. As
memórias da vida passada me parecem recentes, enquanto titubeio
para recordar o que fiz ontem. Tens lembranças do sabor da carne
humana?
Minha impaciência ardia. Aí estava uma chance de saber algo
que meu mentor, o Marquês de Sade, só lera em livros. As narinas
da índia fremiram, toda a rabugice desvaneceu-se, ela parecia
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7. entrada em um transe da mais pura alegria. Sua boca se abriu em um
sorriso beatífico e as mãos tremeram, parecia tomada por êxtase
místico.
- É macia e doce como a carne de preá, entre o porco e o
frango. É melhor com pouca gordura e mais ainda ao
compartilharmos os relatos dos feitos do guerreiro morto ou do
parente querido que está sendo comido. Com o coração a encher-se
de orgulho, a boca faz água, nós curumins mal podíamos esperar o
moquém, comíamos praticamente cru.
Sei bem da urgência infantil, também fui criança sans culotte.
Assim como eu ansiava pelos refugos das bonecas despedaçadas da
Marquesa, minha patroa, os indiozinhos aguardavam os restos
humanos. Iracema fora transportada a um estranho paraíso de carne
e sangue. De sua boca saiu um tênue fio de baba, mistura da cachaça
às recordações da gula.
- Para nós, curumins, a espera parecia eterna. No caso de morte
na taba, nunca chegavam ao fim as muitas rezas para cortar o corpo
que era colocado ao lado das fogueiras, nos moquéns. Mas a grande
festa mesmo era o sacrifício dos prisioneiros.
- Li há muito tempo o relato de um alemão, Hans Staden, que
passou anos com índios e não foi comido. Ah, ainda se não me falha
totalmente a memória, era prisioneiro da aldeia do tal cacique,
Cunhambebe, que mencionaste outro dia.
- Quando Madame se der ao trabalho de examinar os livros que
trouxe verá quem é Cunhambebe. Esse tal de Hans Staden - é assim
mesmo que fala? - eu desconheço, mas o que diz não destoa da
verdade. Os prisioneiros às vezes passavam meses e até anos
morando na aldeia, bem tratados e podiam se servir das mulheres,
pois se deitar com eles era hospitalidade, assim como fazíamos com
os viajantes. Filhos que nascessem também eram comidos.
Não consegui conter certo dó pelas crianças devoradas.
- Não poupavam nem os bebês?
- Não, pois tinham o sangue do inimigo, muito apreciados pela
carne tenra, embora pouca, e maior delicadeza do bucho.
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8. Não se pode condenar apenas os índios por impiedade com o
próprio sangue. Pois não eram os próprios portugueses, os perós,
que vendiam como escravos os próprios filhos nascidos das índias e
das negras? Mas a prosa estava a interessar-me. Busquei mais
detalhes dos banquetes humanos:
- E os prisioneiros eram trancados?
- Qual o quê, moravam em ocas abertas, fugir seria dar provas
de covardia. Com orgulho de guerreiros declamavam de cor belas
falas da hora da morte, pintavam-se e participavam da sua última
festa com muito empenho.
- Como era essa festa?
- Durava horas. Chegada a lua escolhida, o inimigo é levado ao
pátio central da aldeia, atado por uma corda a cintura, esticada por
dois homens. As mãos ficam livres e alcançam com facilidade o
cesto de pedras e frutas verdes que um índio da tribo segura perto
dele, a incitá-lo: “vinga-te antes de morreres”, diz. Aí o prisioneiro
gaba seus feitos, conta quantos de nós ele e seus parentes mataram e
comeram, atira pedras com toda a sua força. Os homens servem de
escudo para mulheres e crianças, que riem muito. Cheguei a ver um
deles morrer com uma pedra que lhe acertou o olho, acabou
moqueado junto ao prisioneiro. O banquete misturava o choro pelo
parente perdido aos gritos de alegria pela morte do inimigo.
- Deve ter sido sem dúvida uma ocasião muito especial –
encorajei-a, sem saber muito o que pensar sobre comer o amigo e o
inimigo no mesmo bocado. - Mas, afinal, como matavam o
prisioneiro?
- Calma, nhanhã. O carrasco, até então escondido, sai de uma
das ocas com plumas presas a seus ombros, braços e pernas. Carrega
um grosso tacape que leva como um cetro de um de vossos reis. Ele
empertiga o corpo e engrossa a voz: “Não és tu da nação inimiga?
Não tens matado e devorado nossos pais e amigos?”, pergunta ao
prisioneiro com o tom rouco a reviver os antepassados já mortos.
“Sim, sou da nação valente, que matou e comeu teus pais” –
responde o prisioneiro. E o índio emplumado então diz: “Agora
estás em nosso poder, serás morto por mim e comido por todos.”
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9. Sabedor de que chegou sua hora, o prisioneiro responde altivo:
“Meus parentes me vingarão.”
Eu já não agüentava mais, parecia ter-me assenhoreado da
gulodice dos curumins a esperar o festim.
- E a morte, afinal?
- O tacape esmaga a cabeça num ruído seco e certeiro. A massa
empastada rega com borbotões de sangue o corpo que cai, as pernas
e os braços ainda se sacodem por algum tempo. Os homens da tribo
nem esperam a imobilidade da morte, com lanças pontudas abrem o
ventre, recolhem vísceras tremelicantes. Machados de pedra dividem
o corpo, a esmigalhar os ossos. As mulheres, aos gritos, repartem a
carne e levam-na a moquear. As tripas são lavadas no rio antes
colocadas a cozer no calor e na fumaça. O cauim cuspido pelas
mulheres nos dias anteriores rega o festim. Ficam todos muito
alegres e bêbados na doce espera dos assados.
- Era possível recusar tão refinada iguaria, algum índio que não
apreciasse carne humana?
- Impossível, nhanhã. As mulheres de minha tribo, como
minha mãe, passavam sangue dos sacrificados nos peitos para dar o
leite, nós curumins desde a mais tenra idade já sabíamos o sabor do
inimigo. O grande tempero é a vingança, pois esse maldito que hora
é refeição terá comido muitos dos nossos, ou seus parentes, o que
vem a dar na mesma.
- Quer dizer então que acabas devorando tua própria carne e
teu próprio sangue, já que os de tua tribo comidos pelo inimigo
agora habitam dentro dele, como tu mesma o dizes
- Madame é mulher muito atilada – respondeu Iracema,
visivelmente encantada. – Claro que ao comer nosso inimigo a força
de nossos parentes por ele engolidos voltava a habitar-nos e nos
revigorava. Mas isso não afastou a desgraça da nossa tribo.
- O que foi essa desgraça?
Ela veio de vários lados, não sei o que foi pior, se os perós, que
mataram os homens das aldeias e levaram mulheres e crianças como
escravos, ou se os missionários jesuítas a pregar o grande pecado de
comer carne humana.
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10. Interrompi a conversa nesse ponto, sem certeza de que meu
comentário seria entendido:
- Para a Igreja Católica, uzeira e vezeira de fazer devorar seu
próprio Deus sob aparência de uma côdea de pão, não deveria ser
tão escandaloso...
- Pois veja, Nhanhã, mais uma razão do abandono em que se
encontram os brancos. Pregaram seu Deus a um tronco e por isso
Ele já não pode ajudá-los.
Concordei com a sabedoria da velha e despedi-me a meditar.
Se ao menos Ele tivesse proposto que O comessem de verdade, em
vez de transubstanciar-se no pão e no vinho, certamente teria sido
mais útil. Quem sabe os valores de amor eterno pregados pela Igreja
não viriam em Sua carne? Pelo menos combateria a fome, um dos
mais nobres propósitos de Roma. Queria saber quem fora
Cunhambebe, já citado duas vezes. Procurei os apontamentos do ex-
patrão de Iracema, que até então não tocara.
Eram oito grossos cadernos de couro com o título em letras
góticas, Voyage au Bout du Brèsil, pour Roger Castide. Algarismos
romanos marcavam a sequência. Escritos a bico de pena em letra
pequena na frente e no verso, traziam em francês nomes de terras e
datas seguidos de comentários e esboços de cenas, paisagens,
plantas, animais e tipos humanos. Havia trechos inteiros riscados e
reescritos, indicando rascunho, pois números e setas mudavam os
parágrafos de lugar. O tal Castide provavelmente passara a limpo
seu trabalho, deixando o primeiro original como lembrança a sua
velha índia para não carregar peso inútil. Em linguajar castiço, o
primeiro tomo começava:
“Detesto as viagens e os exploradores, mas sem eles não
haveria muito a dizer ou a escrever, pois alargaram o mundo com
experiências raras aos olhos europeus. Tendo sustentado minha
própria viagem, não vim como procurador de assuntos que
interessam aos príncipes da Europa, como a existência de pedras
preciosas ou minas de ouro e prata, que os viajantes às vezes
narram, simulando ater-se a descrever palmeiras ou costumes de
silvícolas quando suas palavras, com freqüência tanto mais
10
11. alegóricas quanto mais fantasiosas, apontam para o que está
debaixo da terra, a verdadeira riqueza para esses reis
colonizadores. Eu, pelo contrário, não escrevo senão para registrar
o por mim visto e vivido.”
Interessei-me imediatamente pelo relato do viajante francês,
enaltecedor da liberdade que os próprios haveres asseguram ao
pensador. “Para os habitantes locais é estranho ver um louco que
ajunta borboletas, capins, folhas e insetos como se fossem tesouros,
o que para eles não passa de mato. Por isso eu, naturalista
estrangeiro, sou visto com misto de compaixão pela minha loucura
e desconfiança sobre minhas reais intenções. Minha figura só
ganha respeito quando os curo com as plantas de seus próprios
quintais.”
Propriedades de plantas eternamente me encantam, estudiosa
que sempre fui do assunto, filha de meu pai, jardineiro chefe da casa
de Sade e descendente dos toupinamboux brasileiros. Interessada,
aproveitei a calma da semana para passar tardes lendo. Lamentei os
rabiscos que encobriam trechos inteiros, a tornar algumas
conclusões incompreensíveis. Amiúde, pequenas frases em outra
língua estranha estavam inseridos nos parágrafos em francês.
Descobri por acaso tratar-se de tupi: eram confissões da vida íntima
do pesquisador, tão afeito aos prazeres de Sodoma como meu
querido Marquês. Iracema, inquieta pelo meu desaparecimento,
viera à minha procura, não sei também se na esperança de outra
garrafa de aguardente. Deslocados no mar de rugas do rosto, seus
olhos faiscaram de alegria ao perceber-me mergulhada em seu
legado:
- Que beleza, a senhora lendo os cadernos de meu patrão.
- São interessantíssimas as narrativas do Conde, mas algumas
coisas vem numa língua da qual nada compreendo.
- Sei que escrevia algumas coisas em tupi, que conheço bem.
Ao contrário dos jesuítas, que amestravam os índios com a Bíblia
para melhor dominá-los, Monsieur ensinou-me minha própria
língua.
- Leia então para mim essas frases, por favor.
11
12. Iracema demonstrou absoluto espanto ao começar a ler as
revelações em seu idioma: “O negro carregador tem vara grande e
grossa, duríssima quando excitada, da qual suguei o néctar por
quatro vezes ao longo do dia.” (Kiripi-tatá toka nicoia tipiti, mnhã
tema kulola inkituma kolá, kiripi-ona kopiti nhuma curema iara.)
- Era por isso que o patrão vivia a dar trela a Emmanuel –
bradou. O Conde não saía de casa sem ele, um escravo alto e belo
como uma palmeira, que se apresentava como Filho de Ogum.
O culto de Castide aos falos avantajados era feito em
linguagem desbragada, pois, em tupi, o naturalista não economizava
detalhes de sua vida sexual Para acalmar os pruridos de Iracema,
chamei uma das escravas e ordenei servir-lhe aguardente. A índia
olhou gulosamente tanto o copo quanto o braço roliço a empunhá-lo.
Parecia um cão faminto a cobiçar com olhos imantados o pedaço de
carne da ceia da família. Virou o copo. Li para ela mais um trecho
de Castide em voz alta:
Emmanuel aprendeu a secar bem as borboletas que aprisiona.
No afã de distinguir-se como escravo de naturalista, à moda deles
entrou a cravá-las em ponta de finas hastes de bambu que finca no
chapéu de feltro. Esguio e apolíneo, tresanda uma vitalidade livre e
feminina, atraindo os olhares nas ruas, pois parece que os insetos à
volta de seu chapéu esvoaçam-no como uma auréola de santo. A
índia ajudou-me com o tupi: E como rebola esse negro bem dotado
que todos os dias tem me oferecido a lomba e a vara, além de sugar
como ninguém! (Kiripi-tatá toka nicoia tipiti, mnhã tema kulola
inkituma kolá, kiripi-ona kopiti nhuma curema iara!)
Iracema acabou se rendendo as perversidades nunca sonhadas
de seu patrão e acabamos rindo muito ao prosseguir desvendando-as.
Eram tão engraçadas e desaforadas as relações entre meu
compatriota e o escravo do chapéu de borboletas que acabei
esquecida do que me levara àquela obra. Só no meio do quarto
volume cheguei finalmente a Cunhambebe, o Primeiro Rei do
Brasil:“Ao contrário dos portugueses, que massacravam os índios,
nós, franceses, sempre procuramos neles parceiros comerciais.
Nicolas Durant de Villegagnon, que foi colega de Calvino nas
12
13. classes escolares, usou os protestantes perseguidos pela
intolerância dos católicos franceses para conseguir do Rei
Henrique II e do Almirante Gaspar de Coligny apoio e crédito para
uma grande expedição colonial que lhes permitisse fundar na
América uma França cristã, acima das divisões religiosas. Mas
enquanto Calvino foi bem sucedido em criar uma nova pátria para
os protestantes na América do Norte, a França Antártica, fundada
em 1555, na então selvagem região do Rio de Janeiro, não passou
de um efêmero sonho tropical que durou até 1567.
Ao chegar, trazendo em seus navios boa parte do problema,
pois neles vinham igualmente católicos e protestantes com os ódios
acesos pelas condições da viagem, o almirante francês estabeleceu
uma relação de compadrio com os índios. A simpatia deles fora já
conquistada pelos contrabandistas franceses. E meados do século
XVI os franceses já contavam com 25 trouchements, franceses que
ainda crianças haviam sido deixados entre os índios por
mercadores para que aprendessem a língua. Muitos viviam entre os
índios, com lábios perfurados por pedras, o corpo depilado e até
praticando o canibalismo. Os índios eram tidos por facilmente
exploráveis, a fornecer em troca de ninharias pesadas toras de pau-
brasil, em sua língua ibirapitanga, além de preciosas especiarias.
Mas, em guerra com os portugueses, os índios já não eram tão
ingênuos, queriam armas de fogo, facões, arados agrícolas e
panelas de ferro, além dos tradicionais espelhos e quinquilharias.
Nascido na Provence, Villegagnon distinguiu-se por bravura
na guerra de Carlos V contra Argel, combateu os turcos na Hungria
e participou da campanha do Piemonte. Era natural então que o
aguerrido militar procurasse aliança com o primeiro rei do Brasil
contra os portugueses. Meio século depois da chegada de Cabral,
eles continuavam a escravizar índios e a expulsá-los de suas terras,
enquanto rapinavam em cima ou embaixo do solo. Mas não
contaram com Cunhambebe. Com um tino militar digno de um
Napoleão Bonaparte, o cacique de Ariró, aldeia da baía de Angra
dos Reis, a trinta léguas do Rio, compreendeu que em luta eterna
contra uns e outros, não poderiam vencer os perós. Provando-se
13
14. grande líder, colocou sob seu comando dezenas de tribos, apesar
de Cunhambebe significar “língua que corre rasteira”, por causa
da fala arrastada, quase gaga.
Seus dotes parlamentares, apoiados a um físico hercúleo de
quase dois metros de altura, permitiram que sua fala mansa
amalgamasse a Confederação dos Tamoios, a espraiar-se desde o
litoral sul da Província de São Paulo até os confins de Cabo Frio,
ao norte do Rio de Janeiro. Passava meses viajando entre as
diversas tribos a costurar estratégias e por vezes recusava-se a
tocar qualquer alimento, declarando que só comeria se houvesse
algum português cevado. Depois de dois ou três dias de jejum não é
difícil imaginar a gana Cunhambebe a atirar-se às presas. Ao
contrário de nossos Luíses, que receberam o trono por herança e
foram dele defenestrados por Napoleão, Cunhambebe foi aclamado
Rei do Brasil por suas qualidades de guerreiro, assim como o
Pequeno Caporal se fez coroar pelos franceses. Em uma grande
guerra de canoas, rechaçou os portugueses durante treze anos, de
1550 a 1563.
Para meu encantamento, Castide se dera ao trabalho de
descrever uma dessas batalhas navais entre dois mundos:
Grandes naus de 50 canhões eram atacadas por todos os
lados por centenas de pequenas canoas onde índios de pé, nus,
apenas com o corpo pintado para a guerra, disparavam flechas
certeiras. Muitos navios de guerra foram assim invadidos e
destruídos. Os portugueses sobreviventes eram levados para as
aldeias e devorados pelas tribos. Talvez se as tribos do Norte
tivessem resistido unidas os invasores acabassem expulsos, o que
infelizmente não ocorreu. Esses índios viveram e ainda vivem na era
em que,pouco mais que um macaco, o europeu aprendeu a polir as
pedras. Foram as guerras entre as diferentes tribos européias que
formaram os diversos povos, com suas lendas e seus nobres, que
também descendem de chefes vitoriosos a polir pedras e comer
carne de seus semelhantes. Se os índios tivessem vencido,
certamente teriam surgido no Brasil estirpes reais como a de um
Cunhambebe I, o Rei canibal.
14
15. Consola-me saber que os primeiros brasileiros, a quem coube
o papel de perdedores na História, não deixaram de ter seu grande
general. Com muita propriedade o Vice-Rei da França, Nicolas
Villegaignon, recebeu Cunhambebe com pompas de chefe de
Estado, como mandante supremo da Confederação dos Tamoios e
Rei do Brasil Austero e bem informado, almirante tivera o cuidado
de determinar que os soldados da guarda da fortaleza se
perfilassem para a passagem do rei dos selvagens e proibiu
qualquer manifestação de riso. Assim não houve gracejos nem
sussurros na fortaleza de pedra que sediava o governo da França
Antártica, quando Cunhambebe, nu, pintado para a guerra, passou
em revista as tropas, trajando apenas de um enorme cocar que lhe
chegava quase aos pés. A bater nas pernas e no peito, vangloriava-
se de feitos gastronômicos aos gritos, repetindo ter comido cinco
mil perós. Por intermédio de um trouchement vindo muitos anos
atrás com os piratas e havia se tornado índio, pôs-se a dialogar
com Villegagnon.
Se os estranhos costumes do selvagem Rei guerreiro
causaram espécie aos franceses, o mesmo não ocorreu com sua
estratégia militar, pois mostrou-se exímio na arte da guerra,
Deitado em uma rede que mandara estender na sala de
conferências do forte francês onde se hospedara, dava instruções
certeiras como fortificar todas as ilhas e a foz de cada rio do
continente. O Rei do Brasil muito elogiou os franceses, explicando-
lhes que a palavra mair, como eram chamados pelos índios,
significa pessoa com qualidades divina. Já peró,ou seja, o
português, quer dizer simplesmente feroz em tupi, mostra que essa
língua elogia até os inimigos, ao enaltecer sua valentia.
Além do alemão Hans Staden, que o elogia no relato dos anos
em que ficou refém de sua tribo, o outro único europeu que deixou
registro de contato pessoal com “o grande Rei selvagem, o mais
temido de todo o País” foi André Thevet, capelão franciscano que
acompanhou Villegaignon na mistura de expedição de conquista e
experiência religiosa que foi a França Antártica. Os preciosos
relatos de frei André Thevet sempre encantaram a mim, viajante
15
16. francês, pois me davam a oportunidade de me deslocar também no
tempo e visualizar como teriam sido as conversas com o grande Rei
canibal: “Cunhambebe nos louvava e exortava deitado em seu leito;
e nós, ao ouvi-lo discorrer com sua grossa voz, imaginávamos ter
de volta a sua raça e a de seus pais, consumida pelo dilúvio.” Além
de encontrar-se com Villegagnon, Cunhambebe ainda teve tempo de
vencer batalhas no curto período de três meses em que Thevet
esteve na França Antártica: “Esse grande e temido Cunhambebe
atacou e tomou seis navios a portugueses e índios inimigos, que
foram na maioria mortos e devorados”.
O franciscano parecia ter os guerreiros americanos na conta
de seres primitivos entre os estados animal e humano: “É um prazer
ver nossos selvagens voltarem para suas choças, alegremente,
tocando seus instrumentos de conchas e frutos secos, e tirando deles
tal harmonia que diríamos as trombetas de nossos cocheiros
acrescidas de cantos.” Nossos selvagens? Ça va bien....
Thevet, entretanto, teimava em enxergar nas palavras de
Cunhambebe as confirmações de suas próprias idéias e crenças,
gerando comentários contraditórios, ao meu ver um indício de má
ciência. Apesar de ter escrito: “Eu sei com segurança que esse
povo não tem religião, nem escrituras, nem práticas rituais, nem
conhecimento das coisas divinas”, frei Thevet nos conta, por
exemplo, que Cunhambebe disse acreditar num deus criador do
mundo, a quem chamava de Monan, manifestando também grande
respeito e interesse pela fé cristã: “Cunhambebe tinha tão grande
prazer em nos ver rezando que se prostrava de joelhos e alçava as
mãos ao céu, como fazíamos; e ficou tão interessado em conhecer
nossas preces, que me pediu que lhe ensinasse algumas. Procurei
então, com ajuda de um escravo cristão, traduzir para a sua língua
nossa oração dominical, a saudação angelical e o sinal dos
apóstolos, a fim de atrair esse grande Rei e seus seguidores ao
conhecimento de sua salvação e à admiração das obras de Deus”.
Depois de ter privado com Cunhambebe na fortaleza de
Villegagnon, frade Thevet visitou a própria residência do Cacique,
na Aldeia de Ariró, em Angra dos Reis: a casa teria cerca de 100
16
17. pés de comprimento por 18 de largura e era coberta por folhas de
palmeira e cascas de árvores, encimada por altas fileiras de crânios
de perós e índios das tribos inimigas que tivera o cuidado de
transpassar em longas varas fincadas no chão. No pátio da aldeia
estavam seis canhões tirados de caravelas portuguesas destruídas,
dos quais o próprio Thevet conta ter comprado um, que levou em
sua pesada bagagem de volta à França. O franciscano francês
garante que Cunhambebe era capaz de atirar simultaneamente dois
canhões pilhados de navio que postava sobre os ombros, o que
certamente não passa de um exagero. O atento escrivão da
companhia de Jesus vangloriou-se de ter caminhado 60 léguas
pelas matas guiado por guerreiros de Cunhambebe. Coletou pedras
e esmeraldas e definiu a região de Angra dos Reis como
“importantíssima”: “É das mais belas e agradáveis que já vi, tanto
em florestas verdejantes, e são muitas, e também porque dessas
belas montanhas se poderia tirar grande proveito, por suas minas
de ouro.” O capuchinho francês conta que havia lobos e leopardos
nas montanhas, além de um tipo de macaco especialmente
“inclinado à luxúria”.
Eu já ouvira o nome de André Thevet apenas como capelão de
Catarina de Medicis e não sabia dessas suas aventuras na terra do
pau-Brasil. E já não era pouco manter tal posto junto viúva de
Henrique 2, que tentou matar o líder dos protestantes, Coligny.
Como não c conseguiu, jogou o filho Carlos IX contra os
protestantes, convencendo-o a ordenar uma matança geral para
impor o catolicismo como única religião. A mortandade começou no
dia 24 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, e foi até 17 de
setembro, estendendo-se, nas províncias ainda até o dia 3 de
outubro. Estima-se que mais de 50 mil pessoas tenham sido mortas.
Nas praças, pessoas se atolavam em sangue.
Catarina tornara-se adepta do rapé e das cigarrilhas de tabaco,
que lhe tinham sido trazidas pelo cônsul da França em Portugal. Por
ironia do destino, o cônsul francês levou a fama de descobridor do
tabaco ao apresentá-lo a rainha que logo se encantou para sempre
com os efeitos calmantes e relaxantes da fumaça. O abade Thevet, já
17
18. o fumava desde 1555, quando entrou em contato com a planta, ao.
Não só Thevet se tornara usuário do cigarro como também tomou o
cuidado de Levar da França Antártida para a França muitas sementes
e centenas de mudas para garantir seu suprimento e o dos amigos
que iniciasse na tradicional arte indígena de mudar a consciência.
Além disso, descreveu a planta no seu livro Les Singularitez de la
France Antarctique, publicado com sucesso em 1558. Os cientistas
não resistiram aos encantos de Catarina de Médici.
Lery conta como era usado pelos índios: “Em vista das virtudes que
lhe são atribuídas goza essa erva de grande estima entre os
selvagens, colhem-na e preparam-na em pequenas porções que
secam em casas. Tomam depois quatro ou cinco folahs que enrolam
em uma palma como se fossem um cartucho de especiaria; chegam
ao fogo a ponta mais fina, acendem e põem a outra na boca para tirar
a fumaça que, apesar de solta de novo pelas ventas e pela boca, os
sustenta principalmente na guerra ou quando a necessidade os obriga
a abstinência.
O fato de ter sido cronista e cosmógrafo da efêmera França
Antártica, que aliás havia sido por ele mesmo batizada com esse
nome, permitiu que lhe financiassem livros que o tornariam famoso,
descrevendo as paisagens, os costumes locais, as plantas, animais e
predras. Afinal, os franceses também ficavam sabendo que
Villegangnon havia garantido para os índios que não tomaria suas
terras e que os considerava os verdadeiros donos do Brasil, com os
quais se punha predisposto a conferenciar. Foi nessa qualidade de
representante máximo da França na nova colônia que ele recebeu
Cunhambebe, que ficou hospedado um mês no Forte de
Villegagnon,
Cunhambebe esteve presente a um terço do tempo que Thevet ficou
no Brasil. Durante um dos três meses em que esteve no Brasil,
18
19. colhendo amostras e fazendo relatos que o tornaram uma espécie de
Pero Vaz de Caminha de Villegagnon. Chamava Chumambebe de
Quoniambec e fala dele na Cosmographie Universelle, louvando sua
estratégia militar. Em outra obra, Les Vrais Portraits, o capelão
coloca Cunhambebe ao lado dos grandes líderes da humanidade,
como o Júlio César dos romanos, considerando-o como o grande
líder da resistência dos índios brasileiros.
Mas a aliança com os franceses foi fatal para os tamoios. Venceram
os lascivos portugueses e seu comando de ferro.
A batalha final aconteceu no dia 20 de janeiro de 1563. Cunhambebe
morreu ainda no meio dessa guerra, vitimado por uma epidemia de
cólera, espalhada por roupas infectadas jogadas nos rios pelos
portugueses, um lance que decidiu o confronto, junto com os
canhões e os cavalos trazidos da Europa. Foi sucedido por Aimberê,
filho de um cacique que fora escravizado por Brás Cubas, fundador de Santos.
Cada dia mais era massacrado por Mem de Sá e seu sobrinho, Estácio,
Aimberê, sentindo a gravidade da situação, reuniu o conselho e pediu aos
franceses que partam para salvar suas vidas, principalmente seu genro Ernesto.
Este, em nome dos patrícios, recusa-se e diz que ficarão ao lado dos
companheiros, lutando até morrer como um Tamoio.
Era o fim. Centenas de portugueses e Tupiniquins comandados por Araribóia
foram ao encontro dos bravos Tamoios. Milhares de flechas cruzavam o céu,
ao rimbombar dos canhões e tiros de escopeta. Os combates corpo a corpo
deixaram as águas da Guanabara tingidas de sangue em um trecho que até
hoje é conhecido como praia vermelha. Na praia, jaziam corpos de índios e
portugueses que as ondas teimavam em sepultar. Após 48 horas de combate,
estava arrasado o último reduto dos Tamoios. Seus chefes estavam mortos.
Aimberê, Igaraçu, Pindobuçu e seu filho Parabuçu, o francês Ernesto e sua
mulher Guaraciaba tiveram suas cabeças cortadas e espetadas em estacas,
porque “daquela raça maldita de Tamoios nada haveria de subsistir nas terras
conquistadas pelos portugueses”.
O terror se estendeu, e estendeu-se o luto profundo: tudo eram lágrimas,
prantos e espectros de morte; já há quinze dias, a estrela da manhã,
ressurgindo do fundo oceano à frente do carro do sol resplendente,
19
20. contemplava NOSSO EXÉRCITO A PERCORRER DENSAS MATAS,
INCENDIAR CASAS, TALAR CAMPOS, MATAR INIMIGOS.
Morreram muitos à míngua perdidos na selva, e, com as próprias mãos, pais
mataram os filhos, que pelos bosques os seguiam chorando, para que o choro
deles não atraísse o inimigo.
Os franceses sobreviventes se mandaram , alguns mais pobres
vivaraão índios e os tamoios se fud eram.
Em minha modesta opinião, um dos grandes entraves de
Villegagnon foi tentar instaurar a moralidade nas terras por ele
ocupadas, proibindo seus marujos de deitarem-se com as índias.
Para tentar resolver o problema da escassez de mulheres instituiu
severa moral e mandou vir moças casadoiras da França, na ânsia
de atender a um velho preceito católico: “Antes casar do que
arder.” Quando seu sobrinho veio em outra expedição, trouxe
apenas cinco mulheres brancas. O fato é que aqui no Brasil houve
furor entre os que não foram escolhidos para maridos, vários deles
fugiram para as matas para saciar seus instintos. Controlar a
natureza exuberante dessas terras não vingou, com toda sua
crueldade vingaram os portugueses, lascivos, que adoravam se
deitar com as índias, sendo igualmente por elas apreciados.
Nesse ponto interrompi a leitura e fui ter com Iracema. Há dias
estava praticamente sem falar a pessoa, entretida em devorar, com o
perdão do trocadilho, a obra do naturalista pederasta. Seus
caquinhos de dentes, como lâmina de serrote, mostraram-se em
franco sorriso ao ver-me, e arreganharam-se ao dar com a garrafa.
- Madame, que amável surpresa, cuidava que algo sério acontecera,
há tempos não honra sua pobre índia com o prazer de uma visita.
Por mais estranho que fosse, com sua boca de piranha e suas vestes
toscas, ela incorporava cada dia mais os maneirismos e o linguajar
de Odette. Em meu período de imersão nos livros atentei para
constante burburinho entre elas, estavam a tornar-se amigas. Antes
20
21. assim, abomino disputas sob meu teto, já tinha visto ódio suficiente
na casa dos Sade e em outras onde vivera.
- Está tudo bem, nada te falta?
- Nada, Madame, nhanhã Odette é muito boa. Se me permite, vi
buraco feio a atrair incautos a quedas no meio do jardim, posso criar
alguns peixes nele. A senhora tem alguma preferência?
Na verdade o motivo que me levava a Iracema passava longe do
tanque vazio. Queria saber mais sobre as relações libidinosas entre
colonizadores e índios descritas por Castide.
- Usa os peixes que quiseres, devo-te um favor, ajudaste-me a
decifrar a verdadeira linguagem de teu travesso patrão. O que
achastes de tão bizarros atos?
- Nossa Senhora me acuda – persignou-se a índia, esquecendo por
um momento de sua eterna rixa com a Santa Madre Igreja, por ela
considerada causa do extermínio moral dos índios, enquanto trocava
seu eterno fiar por um copo de aguardente. Esse grau de civilização
Odette já conseguira lhe incutir, ela não emborcava mais
diretamente o gargalo da garrafa.
- Tu vives a queixar-te dos portugueses, que exterminaram teu povo.
Por que teu patrão fala que as índias preferiam os perós?
O rosto vincado não chegou ao êxtase de Santa Tereza d’Ávila ao
recordar-se do sabor da carne humana, mas foi quase igualmente
beatífico:
- Ah, os índios nos penetram sem jeito, o gozo rápido lhes basta, se é
que me entende, Madame. Pode imaginar a primeira vez em que me
deitei com um português? Insaciável, corria a beijar-me por todas as
partes, meu corpo tremia, como se sacudido por um êxtase perpétuo.
21
22. Não bastasse me dar inúmeros prazeres todos os meus buracos, tinha
um membro bem mais avantajado que os da minha tribo. Enquanto
me enchia de sua seiva me dizia, “estou-me a vir, estou-me a vir”...
Abraçava-me na rede e algum tempo depois recomeçava todos os
folguedos...
Achei poética a maneira de a velha índia se referir ao êxtases do
coito, seu orgulho em confidenciar-me que aquela carne velha já
conhecera momentos de raro esplendor. Bateu-me um sentimento de
brio nacional.
- E os franceses, como eram, chegaste a te deitar com algum
patrício?
- As antigas conversas das mais velhas da minha tribo, já perdidas
no tempo, contavam que ofereciam com prazer suas vulvas abertas
como flores na beira dos lagos para os mairs atracados nas pedra.
Era uma espécie de orgulho para as cunhãs, de risadas e conversas
entre as amigas, contar que os momentos na rede podiam ser muito
melhores com os brancos. E para capturar a seiva daqueles aliados,
muito pai índio encaminhava as filhas aos locais onde se banhavam
os mair.
Imaginei as vulvas roxo sépia das índias, oferecidas ao homem
branco, cobiçada presa das nativas. Através das pantalonas, aqueles
olhos amendoados tentavam adivinhar o tamanho avantajado do
membros rosado do branco, em comparação ao fúcsia da vara
eternamente exposta de seus homens, cada dia mais escassos,
dizimados pelas pelejas entre as tribos.
- E os negros?
- Ah, esses vim a conhecer quando vim para a cidade em meus
verdes anos, escrava de bandeirantes. Além de delicados eram
extremamente bem dotados.
22
23. - É por isso que os mestiços nessa terra, apesar de serem chamados
de negros, vê-se bem que são cruzamentos de índios, negros,
brancos, pardos, europeus. Não é atoa que volta e meia surgem olhos
verdes ou azuis a iluminar peles trigueiras como dois faróis a guiar
navios em meio a escuridão da tempestade.
Achei que já estava indo longe demais nas divagações sobre
mestiçagem. Tornei a Iracema:
- E como chegaste a te engraçar com os negros?
- Vim do norte, muito longe, em uma travessia que acabou matando
vários dos poucos sobreviventes da chacina de minha tribo.
Manietados por cipós, éramos praticamente arrastados. Quem
tombasse por doença ou fraqueza era simplesmente abandonado,
cortavam-se as amarras e o infeliz ficava jogado para morrer de
fome ou ser devorado pelas onças.
- Chegaste direto ao Rio de Janeiro?
- Foi, depois de vários ranchos pelo mato, léguas infindáveis de
espinhos e tormentas, cheguei ao Rio mais viva que morta. Estava
tão alquebrada que fui vendida a baixo preço a uma senhora, Maria
Clara, que tinha uma filha bela e inútil, Maria Engrácia. Ela só
animou-me a levar para me ensinar fazer rendas, pois gostou da
forma das minhas mãos. Assim comecei a tecer, e logo depois a
vender meus produtos na rua, a aprender a falar a língua e lidar com
dinheiro dos brancos.
- Tua primeira senhora era boa para ti?
- Não sei. Passava o dia deitada em um estrado, acompanhada pela
filha, deitada em outro a seu lado. Nada tinham de seu, mas
comportavam-se como fidalgas de alto bordo, o dinheiro era eu
23
24. quem aportava. E no tabuleiro conheci Benedito, pois vendia
refrescos de aluá.
- O que é aluá?
- É uma fermentação de farinha de milho que pode ser feita com
cascas de frutas como a do abacaxi, gengibre e caldo de cana de
açúcar, além de um pouco de limão. Benedito fabricava os refrescos,
pois era liberto, e os trazia em grandes tinas. Comecei a notar que
sempre procurava montar o tabuleiro perto do meu. E ajudava-me a
montar e desmontar meus teréns, facilitava quando eu tinha
problemas com troco, era um verdadeiro anjo negro.
- E esse anjo nada pedia em troca de seus favores? – indaguei. Para
quem tinha passado anos da vida entrevistando moças desejosas de
prestar seus favores na casa de Madame de Sade, o mais famoso
bordel da França, sabia exatamente como conduzir essas questões.
- No princípio não, mas eu notava que ficava em constante ereção
em minha presença. Morava com uma mulata já com o porte
arruinado pelo grande número de filhos pequenos. A minha
juventude, aliada a alimentação, ainda que não muito farta, da casa
das Marias, havia recuperado-me das agruras da viagem. Certa
manhã de fevereiro, curiosa para ver o que era o entrudo, o tal
carnaval do qual os ambulantes tanto me preveniam, pedi a Nhanhã
Maria Clara para sair à rua.
- Eu mesma ainda não vi nenhum.
- Madame se prepare, as brancas raramente se misturam nesses
desvarios, a população parece tomada de furor animal, atiram limões
de cera com água perfumada, arrancam as roupas das negras que
vem pelas ruas e jogam farinha nos corpos molhados.
- Os negros devem virar fantasmas brancos de farinha.
24
25. - Justamente, madame. Estava eu atordoada com toda esse
manifestação, tão diferente das festas de minha tribo, embalada
pelos cânticos das fanfarras, meio assustada com o burburinho
quando vi um rosto amigo. Era o Benedito. Trazia vazio o barril dos
aluás.
“Vendeste bem”, comemorei, um pouco tonta. “Muito, vamos a uma
taberna celebrar. Algum dia tomaste aguardente?” A única bebida
que tomara em minha vida era o caulim, e lembro-me do agrado que
o torpor me causara. Concordei e segui-o.
Entramos em um lugar assim assim. Sentamos, ele ordenou uma
garrafa, eu engasguei e tossi com o primeiro gole. Passou rápido. O
calor que me invadia só encontrava igual nas lindas noites de
devorar um inimigo. Benedito tagarelava alegremente, embalado
pelo álcool, eu o olhava fascinada. Sempre o achara simpático e
prestativo, mas agora não conseguia tirar os olhos dos seus e
imaginei como seria um negro nu – a última vez que estivera com
um homem fora meses antes, durante a travessia para o Rio. O peró
não fizera jus à fama de seus patrícios, fora rápido e desajeitado,
apesar de mesmo assim ter deixado saudades.
– Sexo é bom mesmo quando é ruim – argumentei. E eu também já
tive 20 anos, sei bem como são essas coisas. E desde então te
quedaste também pela pinga, pelo visto, repliquei, ao constatar que a
garrafa estava já quase vazia.
- E pelo Benedito, Madame. Ele tomou-me pela cintura e saímos
naquele burburinho, já nos atracando em meio a multidão. O álcool
e o cheiro indescritível daquele homem alto e belo me deixavam
completamente zonza. Mas nada me preparou para o tamanho e a
pujança do membro que colocou em minhas mãos, sem a menor
cerimônia, quando finalmente alcançamos o primeiro areal vazio.
Levantou-me a saia e deitou-se sobre mim, rasgando-me as
entranhas.
25
26. Lembrei-me de Emma e Fatoumbi a copular na sala dos
espelhos do Madame de Sade, ébano e marfim entrelaçados para o
deleite da assistência de plantão. Imaginei a cena, ébano e oliva no
areal.
- Eu arqueava as cadeiras e não conseguia conter os gemidos,
enquanto ele vinha cada vez mais fundo e rápido, com aquele
membro que parecia partir-me em duas. Lutamos embolados por
vários minutos, até que seus gritos me avisaram que chegara o
momento. Repousou sobre mim alguns minutos, arfantes, falando-
me ternuras e sandices. E logo senti seu membro pulsante de novo
em minha vulva. E recomeçamos o jogo.
- E aí?
- Mal víamos a hora de fechar os tabuleiros e escapulir para as
tavernas, praias, areais, estrebarias, qualquer canto que pudesse
abrigar dois amantes famintos. A mulata odiava-me, mas acho que
por instinto feminino, pois ele continuava a cumprir seus deveres
domésticos, tanto que teve mais uma filha com ela, quase ao mesmo
tempo em que nascia a nossa. Maíra durou apenas dois anos,
vitimada pelas febres e amarelões. Depois que ela morreu ainda saí
com Bene algumas vezes, mas as chama se fora. Nos despedimos na
tristeza da filha morta e continuamos colegas de camelotagem.
Iracema tomou o último copo de pinga.
- Já me tornara exímia fiandeira e consegui outros amantes, pardos,
cafuzos, brancos, mamelucos, estrangeiros, perós, maíres, mas nada
me satisfazia. Minha patroa estava satisfeita com o lucro dos novos
tecidos, mas um dia, chegando em casa, depois de uma bebedeira
com Bené, dei de cara com a tenra Maria Engrácia, adormecida, com
a carne branca e cevada de todos esses anos de divã.
26
27. Iracema salivava:
- Mordi aquele braço branco, tentei arrancar-lhe um naco. A moça
acordou aos berros, que alertaram a mãe, encontrou-me a sugar
avidamente o sangue do braço roliço. Horrorizada, vendeu-me em
um bairro mais distante, pois não queria perder dinheiro, ao
contrário ganhou ao exibir minha habilidade no tear. Tentei mais
uma vez morder um braço de uma escrava. Fui novamente vendida,
até que minha fama começou a se espalhar. Acabei liberta, ninguém
me queria comprar e achavam que não valia o risco de ter alguém
que pudesse devorá-los. Errei por empregos miseráveis até o meu
patrão francês abrigou-me, fazendo-me prometer que nunca mais
comeria carne humana, pois não podia arriscar-se. Já estava velha,
prometi e cumpri.
Compreendi melhor a verdadeira síndrome de abstinência que
atacava Iracema, parecia Juliette, a negra do saiote de bananas,
quando lhe faltavam doses de beladona. Juliette matara-se de
overdose, mas a Iracema ainda restara a possibilidade de afogar as
mágoas na cachaça. Antes assim, pensei. E voltei a minha leitura.
Nos últimos cadernos de anotações, Castide deixara de lado sua
fixação por falos grandes e voltara-se para a história do país e dos
grandes viajantes.
Mas a grande revelação que mudaria minha vida ainda estava
por vir: no final das anotações, num parágrafo circulado para ser
colocado em rodapé, Castide descreve a seguinte genealogia, que
transcrevo literalmente: “Insaciável diante das ordens da natureza
Cunhambebe teve 14 mulheres e numerosa descendência, incluindo
o filho que herdou seu nome e morreu em guerra contra os
portugueses. e um neto, Poty, que foi levado para a França pelo
capitão da Marinha Real Hervé de Tocqueville. Como outros índios
que chegaram a se misturar ao populacho francês, deixando seus
traços em uma ou outra região, consta que Poty teve muitos filhos.
1’ Quem gostava de me contar velhas histórias de família era meu
pai, que se vangloriava de ser descendente de Poty, o protegido de
Hervé de Tocqueville. Capitão da Marinha Real, ele trouxera o índio
27
28. da antiga França Equinocial no século XVII, da longínqua terra
tropical conhecida como Vera Cruz. Poty, camarão na língua dos
topinamboux, ganhou correspondente em francês, rebatizado por
Tocqueville como Pierre Pêcheur, ou Pescador.
A maioria dos selvagens transplantados para a Europa
terminaria morrendo de gripe ou sarampo, mas Poty, que gostava de
andar nu, viveu até idade avançada. Teve tempo mais que suficiente
para casar-se com a tecelã Marie, em 1610, e produzir vasta prole.
Por sinal do destino, talvez, Marie Pêcheur tingia seus fios com um
produto vermelho vindo da terra natal do marido, extraído da árvore
pau-brasil.
Eu não podia acreditar no que estava lendo. Eu, Josephine Pécher,
era a descendente direta de Poty, o herdeiro de Cunhambebe levado
para a França. Herdara dele o sangue que meu coração disparado
fazia zunir nos meus ovidos.
Não era atoa tão ilustra ascendência. Esse gosto pelo sangue
jovem vinha desde a casa dos Conde, a nobreza francesa de alta
linha que dera origem ao Marques de Sade. Lembrei-me de minha
primeira experiência sexual, no mesmo dia em que desceu minha
primeira regra, deixando-me embaraçada frente a todos os
convidados do Marques de Sade.
Eu Josephine Pêcheur, filha da arrumadeira já morta,
Margueritte e de Jean Pierre Pêcheur, jardineiro-chefe, contava 13
primaveras. Minha interessante combinação dos olhos azuis e da
pele branca da mãe, francesa de origem operária com os cabelos
negros e lisos do pai, descendente de tupinaboux brasileiros, cativara
a atenção de meu devasso patrão, Alphonse Donatien, o Marquês de
Sade. Corria o ano de 1776 e ele viera esconder-se no castelo para
fugir da polícia a procurá-lo por acusações de sodomia e
perversidade. Em um teatrinho para os hóspedes, em que eu era a
noiva, linda em um dos vestidos velhos da patroa, acabei
publicamente humilhada pela marquesa, que denunciou os
convidados meu primeiro sangue menstrual a manchar a roupa
28
29. branca. E condenou-me a descer aos porões, como ajudante de
cozinha.
Meu ódio por ela aumentou mil vezes. Meu primeiro pecado
tinha sido invejá-la. Queria usar vestidos como os dela, dormir num
quarto enorme em vez de viver no porão. Por que ela podia ser rica,
cortejada, poderosa, e eu não? Principalmente, queria ter o marido
dela, com seus modos refinados e roupas sofisticadas parecia um
príncipe de contos de fadas perto dos rapazes rudes da aldeia e das
cavalariças.
Implorei a meu pai que usasse suas plantas para fabricar
alguma forma de ajudar-me – afinal de contas, ele repetia que as
plantas são remédio para corpo e alma. A princípio recusou-se.
Depois, convencido pelos meus rogos e súplicas, deu-me a receita
do Floral da Inveja com as flores roxas da íris da primavera, sempre
almejando o que não são. Fiz o floral com água e flores. Tinha tanta
fé na ciência de meu pai que nem por um minuto duvidei de seu
efeito. Dividida entre a brincadeira e a esperança, assinei com o
nome de quem contava me transformar, em breve: Madame de Sade.
Passei o dia inquieta, como me tornaria a Marquesa? ]
À noite, decepcionada com a aparente ausência de
modificações, caí em sono profundo. Nada seria capaz de me
despertar, exceto o toque fino a tapar-me a boca. Acordei em pânico,
reconhecendo as mãos aristocráticas do Marquês. Os lençóis
abaixados e a camisola erguida deixavam meu traseiro de fora, e ele
acariciava minha bunda com a mão livre. Não havia como livrar-me
de seu braço. Amordaçou-me com um trapo e beijou-me o traseiro,
acariciando-o com a língua, enquanto a mão deslizava na direção da
minha vulva suja de sangue, pois ainda estava em minha primeira
menarca. Quando tocou-me ali, em leves movimentos circulares, eu
já não queria resistir. Com a mão molhada no meu sangue, Sade
untou meu traseiro já umedecido por sua saliva. E então, de repente,
cravou-me as unhas nas nádegas, afastando-as, e meteu-me por
dentro um estranho pedaço de carne dura e quente.
Perdi o fôlego de dor, meu grito foi abafado. A vara rasgou-me
em duas. Quando achei que morria, um gemido desconhecido
29
30. escapou-me da garganta. Percebi que os movimentos do Marquês
cravado a meu traseiro produziam estranhos arrepios na minha
espinha, enquanto seus dedos hábeis acariciavam meu grelo.
Comecei ondular a bunda no ritmo dele e minhas mãos agarraram o
lençol da cama, convulsivamente. Eu já não respirava, arquejava,
quando ouvi a gargalhada de Sade, alta e fria. Deitando-se em
minhas costas, tirou minha mordaça e avisou, sério:
- Se quiseres mais, vais ter de pedir.
Enquanto o ar entrava em meus pulmões, ele retirou de mim
sua espada de carne. A sensação era a de estar perdendo o céu.
- Não pare. Mais – implorei. -
Às gargalhadas, ele meteu de uma vez só sua vara pulsante e, em
movimentos muito rápidos, foi me jogando cada vez mais fundo em
um túnel onde só o prazer havia. Eu chorava e ria ao mesmo tempo,
sem saber o que era mais forte, o sofrimento ou o gozo, a
humilhação ou a excitação. Nesse momento esses sentimentos
antagônicos se fundiram dentro de mim, para sempre contíguos e
inseparáveis.Ao acabar deu uma palmada no meu traseiro sujo de
sangue, esperma e merda, dizendo irônico:
- Levas jeito, pequena.
Ao alcançar a porta falou com um certo laivo de carinho:
- Terei prazer em ensinar-te que a decência e os princípios
morais são costumes a que hoje se liga muito pouca importância, de
tanto que contrariam a natureza. Ter prazer é o único sinal de que se
está agindo em conformidade com as leis naturais. Se tu gostas do
que é perverso, isso só significa que a natureza desejou que fosses
perversa. E seria contrário à natureza não obedecer a ela...
Uma lição difícil de esquecer. Adormeci sem sequer tentar
lavar-me. Ao acordar corri ao espelho. Algo teria mudado em meu
rosto, como acontecia com as mulheres que conhecem o sexo,
segundo asseguravam as criadas mais velhas? Aparentemente, tudo
continuava igual: a boca pequena e carnuda, o cabelo escuro um
pouco despenteado, a pele clara, o nariz delicado, os olhos... Os
30
31. olhos não eram mais os francos olhos azuis herdados de minha mãe.
Exibiam reflexos muito escuros, estavam quase roxos como as
pétalas das íris. E como se chamado por meus desejos, vi no espelho
o rosto do Marquês sobrepor-se ao meu, os olhos dele idênticos aos
meus, também roxos. O Floral da Inveja funcionara, eu me tornara
pela porta dos fundos herdeira do dark side de Sade.
O primeiro dos pecados levou a todos os outros e ajudou-me a
erguer meu império, através da Gula, Luxúria, Soberba, Ira,
Preguiça, que por sinal, foi quem me trouxe ao Brasil..
Avistei Gizeh, correndo no jardim em direção ao tanque vazio. Bom
atleta, o anão que nos fora dado por um oficial de Napoleão e não
nos quisera abandonar em nossa saída da França. Ele costumava
fazer piruetas no tanque vazio, onde se atirava em saltos mortais.
Lembrei-me de que Iracema havia enchido o tanque com peixes e
tentei avisá-lo. Gritei, o anão virou-se e me acenou alegremente,
sem entender. Sua mão foi a última coisa que vi. Gizé foi como
tragado pela água, corri temendo que se estivesse afogando. Nada
me preparou para o horror que vi a seguir.
Quase mais nada restava do meu querido e pequeno mameluco.
Peixes vorazes disputavam cada naco seu. ..cvascata das piranhas.
Meus olhos se turvaram de lágrimas. Entendi que não havia
salvação, eu assistia impotente dezenas de bocas vorazes se
atirando..boseira, boseira.....No final um gorrinho, como se de
criança fora, flutuava manchando de sangue vermelho.
Aos gritos, chamei Iracema. Odette, atraída pelo reboliço, correu na
frente da índia, que acorreu com seu passo ligeiro. Quando chegou
não entendeu nada, mas abraçou-me. /eu soluçava, apontando a
mancha de sangue que turvava o espelho d’ água:
- Os peixes comeram Gizeh.
31
32. Ato contínuo, a ira me possuiu. Empurrando Odette, contive-me
para não estrangular Iracema:
- Como ousaste encher este tanque com esses perigosos animais
selvagens?
- A senhora me desculpe, madame, mas disse que escolhesse de
minha preferência
Madame, mil perdões, disse a índia ajoelhando-se a meus pés.
Nunca imaginei que nosso pobre querido pequeno fosse ser vítima
de tal armadilha.........
- Animal, foste logo escolher piranhas?
- Não tenho palavras para exprimir meu pesar, mas escolhi peixes
que comem carne, pelo menos eles não desvirtuaram os
ensinamentos dos antepassados.
Me deu vontade de rir entre as lágrimas. Enquanto dominava-me
acalmei-me, era justo, eu mesma liberara a velha louca pra fazer o
que quisesse. Mas Odette estava inconsolável:
- Ai, logo eu, que dei a maior força para essa bugra, dei-lhe os
carregadores ontem pra encher o tanque. Quem diria que isso ia
custar meu querido, oh, índia selvagem, não passas de um animal
sem alma, como vamos viver em uma casa com uma canibal velha e
seus peixes assassinos?
Achei que estava a passar dos limites. Depois de saber-me
descendente de um canibal e ter-me lembrado de minha entrada no
mundo, não seria um tanque de piranhas que iria me matar. E ainda
poderia ser boa defesa e além de bom lugar de desovar inimigos.
- Disso cuido eu, mande cercar o tanque para evitar novos horrores.
E Iracema, recolhe-te a teus aposentos até que te mande chamar.
32
33. Tratei de acalmar Odette, voltando de braço dado com ela para casa.
De repente me dei conta de nosso andar vagaroso, éramos mesmo
duas velhas, pensei.
- Vamos tratar de encomendar a alma de nosso Gizeh, pois não
sobraram nem os ossos, afaguei-a. O nosso mascate sírio deve
conhecer alguma cerimônia.
A trágica morte de Gizeh gerou vários comentários nos primeiros
dias, que me eram trazidos pelos serviçais da rua. Depois, como tudo
na vida, foi pouco a pouco diminuindo, acabou esquecida. No afã de
agradar-me, principalmente depois de eu ter poupado suas piranhas
assassinas, Iracema parecia nunca mais se desgrudar dos teares e da
roca. Parecia ter sido tomada por uma maldição de contos de fadas,
aquelas tarefas hercúleas, repetitivas, em que as bruxas malvadas
condenavam a pobre princesa a fiar quantidade desmesurada de fio e
elas se desincumbiam com a proteção de um ente de outro mundo. O
resultado foram tecidos belíssimos, de vários tons encarnados a
lembrar o sangue do anão a diluir-se cada vez mais na água. Eram
em tamanha quantidade que resolvi aproveitá-los.
A maioria do meu mobiliário viera comigo da Casa da Marquesa de
Sade e sofria com a umidade do clima tropical. Resolvi reestofá-los
com os tecidos da índia, mais adequados. As poltronas Chippendale
ganharam motivos indígenas no encosto. Por um gosto meu, a
lembrar-me de um vaporoso vestido branco da outra Joséphine, a
imperatriz, mulher de Napoleão, no qual o tradicional modelo
diretório, preso abaixo do busto, trazia aplicações de ananás,
algumas foram enfeitadas por bordados dessa fruta. Por sua vez, os
canapés foram ornados por motivos de flores brasileiras e aves
belíssimas. Adicionei a isso alguns aparadores brasileiros, de formas
secas, elegantes e retas. O resultado foi maior frescor e espaço na
casa, que ficou mais clara e alegre, com novos vasos de plantas
dentro de casa e nos jardins. Eu não precisava mais da estufa
33
34. parisiense para cultivar minhas amadas lavandas e miosótis. O Novo
Mundo marcava mais um tento.
Optei por manter minha magnífica porcelana de Limoges, os cristais
de Sevres e os talheres de prata, a contrastar sofisticadamente com o
estilo mais despojado. Acostumada aos leilões de carne humana, em
Paris a abastecer lupanares e aqui no Rio casas grandes e senzalas,
Odette, sempre prática, sugeriu dar o mesmo destino aos móveis
europeus que não encontram espaço nessa nova ordem. Anunciei na
Gazeta do Rio de Janeiro: “Viúva francesa recém chegada vende
finíssimo mobiliário a preços confortadores. Domingo, dia tal, 12h,
endereço tal” Alguns escravos vieram trazer recados dos patrões
interessados, alguns de minha própria vizinhança mas, para minha
surpresa no domingo cedo, uma dama em uma liteira parou à porta.
Um negro veio avisar da presença de sua patroa. Pedi-lhe que
entrasse
- Sou Maria da Glória Paranhos, dama de honra de Sua Alteza, a
princesa regente Carlota Joaquina de Bourbon, que se mostra
bastante interessada nessas peças finas anunciadas pela senhora.
- Será uma imensa honra tão ilustre visita, vou recebê-la com todo
gosto, assegurei.
Esmerei-me nos preparativos. Era a primeira vez que eu abria os
salões de meu novo endereço, pois até então limitara-me às visitas
de vizinhos e muito raramente retribui-las. Ainda que fosse um
simples leilão, a presença da princesa regente dava-lhe novo peso, os
mexericos que ouvia da boca das escravas e das poucas pessoas com
quem convivia haviam-me atiçado a imaginação. Nascida em
Aranjuez, em 1775, portanto, mais nova que eu 12 anos, Carlota
Joaquina de Bourbon COLOCAR AQUI O NOME INTEIRO, filha
do Rei da Espanha, Felipe IV, e de Luisa de Parma, fora tirada de
casa aos dez para casar-se com o príncipe de Portugal. Era culta
ardilosa. Aos trinta, em 1805, tentou declarar o próprio esposo
34
35. incapaz para arrebatar-lhe a coroa. A conjuração descoberta, o casal
separou-se, mas não desfez o casamento de conveniência, cada um
vivendo em seu palácio, ela Queluz e ele em Mafra.
Em 1807 a iminente invasão francesa obrigou-os a singrar juntos os
mares. Mal chegados ao Brasil, rumaram novamente a seus novos
Palácios, dessa vez Carlota no Quinta da Boa Vista e Dom João na
puta que pariu. Diziam-na inconformada em aqui habitar, pois, além
de cobiçar uma coroa em sua própria cabeça, faziam-lhe muita falta
os ademanes das cortes européias, aos quais era grandemente
afeiçoada. Sentia que o Rio de Janeiro já nascera pequeno para ela,
aspirante a ser pelo menos a Rainha da Espanha. Sua solitude ao
norte do Trópico de Capricórnio era mitigada pela predileção por
militares, especialmente os encarregados de sua guarda, tinha fama
de ninfomaníaca, a atirar-se sobre qualquer um que usasse calças e
estivesse perto o suficiente para aplacar-lhe o desejo insaciável.
A semana foi consumida em compras e ordens ditadas às criadas e
escravas, a preparar as mais saborosas delícias. No domingo
coloquei um vestido relativamente simples, de cassa branca. Como
jóia portava apenas a estrela de esmeraldas, da qual nunca me
separava, presa a uma fita de veludo no pescoço. Uma anfitriã nunca
deve sobrepujar o brilho das convidadas. Em compensação, vesti as
escravas como princesas. Misturei sedas francesas e tecidos de
Iracema a envolvê-las em riquíssimas mantilhas. As que não
ostentavam orquídeas nos penteados eram coroadas por tiaras de
diamantes, reservas que trouxera da França quando resolvi vir para o
Brasil. Eram mais fáceis de portar e a ocultar na travessia que barras
de ouro. Fiz um semicírculo com as escravas do lado de fora da
porta principal, postando-me ao meio, O sol do meio-dia reluzia nas
jóias das moças, seu brilho e a cor das flores a contrastar com a pele
negra. Formávamos um conjunto magnífico.
Já postados, percebi uma caravana de liteiras em fila indiana ladeada
por vários negros. Pararam e os escravos colocaram as liteiras no
35
36. chão para que as negras de honra ajudassem as damas a sair. Foi
visível o encantamento hipnótico da comitiva frente ao requinte de
meu serviço doméstico. As damas acorreram a uma liteira,
visivelmente a mais luxuosa. Uma escrava abriu a porta, deixando
descer uma mulher com um chamativo vestido vermelho e a cabeça
envolta em tecidos. Os mexericos davam conta de que fora
praticamente devorada por piolhos durante a viagem de Lisboa ao
Rio, daí raramente expor a cabeleira, pois tornara-se muito rarefeita.
Os turbantes, até então restritos aos pobres e aos escravos que na
África eram muçulmanos, viraram moda na corte, foram tomados
por último grito da corte lisboeta. Dirigiu-se a mim de forma afável,
em escorreito francês:
- Que bela casa tem aqui, Madame, que luxo nota-se até em suas
escravas. Já se faz comentar no Rio de Janeiro pela elegância, até
que enfim alguém de gosto e móveis refinados, no meio desses
bugres sem civilização.
Constatei que tinha dentes horrivelmente estragados e respondi
fazendo-lhe uma reverência:
- Seja bem vinda, princesa, muito me honra recebê-la.
Os destinados à casa entraram, trocando impressões e exclamações.
Escravos e liteiras foram acomodados no pátio. Odette ficou
encarregada de receber os outros postulantes, que já chegavam.
Dona Carlota Joaquina encantou-se com a transparência das
cristaleiras em que guardava livros como se fossem estantes. Eram
as mesmas da casa de Madame de Sade e protegiam bem obras
preciosas da fumaça dos charutos e dos eflúvios do álcool. Mas
tomara o cuidado de guardar as mais libertinas e deixar a vista um
catálogo o The Gentlemen and Cabinet Makers, uma espécie de
bíblia da alta marcenaria escrita pelo inglês Thomas Chippendale.
Mostrei o manual dos cavalheiros e dos marceneiros à princesa.
36
37. Despertar o interesse para as Chippendale remanescentes era minha
certeza de obter melhor preço quando soasse o martelo.
- Essas cadeiras, como a senhora pode ver, foram feitas com árvores
brasileiras, essa madeira é o legítimo acaju – valorizei.
- Que maravilha, um sopro de civilização, suspirou a princesa dos
dentes podres. - Pelo menos essas árvores soberbas tiveram nobre
fim.
Lembrei-me que o Conde Castide, em seus escritos sodomitas, já
lamentava a exploração desenfreada dos colonizadores portugueses
e negociantes franceses construíra e mobiliara a Europa, tendo
conseguido substituir por material nobre de baixo custo os caros e
quase extintos carvalhos, que haviam mobiliado a Idade Média. “A
perda dessas magníficas florestas é uma lástima: afinal, nós
dependemos delas e elas podem muito bem passar sem nós.” Do
vigamento ao mobiliário, atinei que a Europa moderna era feita
principalmente de mogno, imensa árvore da região das Amazonas, e
não mais dos carvalhos que um dia tinham sido deuses na Grande
Bretanha e na Germânia. Achei melhor não comunicar esses
pensamentos à princesa, afinal de contas fora a Coroa portuguesa a
responsável pelo final das árvores. Embora ainda em 1799 o próprio
rei de Portugal tenha definido em lei as madeiras que deveriam ser
preservadas, numa lista de lindos nomes, como jataíbas, perobas,
vinháticos, sucupiras, jatobás, sapucaias e cedros, as madeiras-de-lei
viraram letra morta e sua coleta nunca foi contida. Relembrei
Castide e outros naturalistas constatando já não ser possível
encontrar, neste alvorecer do século XIX, os exemplares de pau-
brasil que três homens não conseguiam abraçar citados nas crônicas
quinhentistas. A voz da princesa interrompeu meus pensamentos.
Ela já tinha esquecido os paus e estava curiosa sobre mim:
- O que veio uma senhora tão refinada fazer nestes tristes trópicos?
37
38. - Vim em busca do sol – respondi simplesmente.
Na verdade recomendara a Odette e ao falecido Gizeh que não
dessem muitas explicações sobre minha verdadeira origem. Como
todos os meus anos à frente de meus empreendimentos deixaram-me
um patrimônio imenso, passava por viúva de posses e estava bom
assim. Entre a essência e a existência, a mais famosa cafetina da
França, Madame de Sade, sobrevivia apenas dentro de mim.
Assentei as damas no sofá, mas era difícil aquietarem-se, atraídas
pelas novidades da casa. Tudo queriam tocar e alisar, como crianças
curiosas, dando gritinhos de entusiasmo. Os graciosos traseiros dos
bronzes de Cupido, parte do meu passado do qual também me
desfazia, fizeram furor dentre a corte carioca. Mandei servir vinho
do Porto e licores da terra, muito apreciados. Encarreguei Iracema
de ver se os negros a cantar lundus no pátio estavam bem-servidos
de mandioca, carne assada e refresco de aluá. Esses preparativos não
tomaram mais que alguns minutos, findos os quais tornei a sua
Alteza. A primeira pergunta veio dela.
- É verdade que a senhora tem um tanque de piranhas? Soube da
tragédia, que lástima, um de seus criados morreu nela.
Novamente com exclusividade para meus botões, figurei que Corte
devia ser muito desenxabida para haver atenção a comezinhas
domésticas, um assunto tão pequeno para quem sonhava ser a
Rainha do Mundo... Sendo assim, ofereci-me para levá-la a ver as
piranhas. Aceitou com entusiasmo. Municiei-me de um generoso
naco de um cavalo recém sacrificado por ter quebrado uma pata e
fomos ao jardim, escoltadas por escravas a portar sombrinhas de
seda. Uma série de pequenos gritos histéricos acompanhou a
voracidade das piranhas a dar cabo da presa em instantes. Ao ver o
ar de asco misturado a fascínio de Carlota Joaquina, herdeira da
Espanha, resolvi provocá-la.
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39. - Pois sabia a senhora que me tem em tão alta conta, francesa de
grande civilização, sabia que sou descendente direta de um bugre,
como os chama, um índio brasileiro e ainda por cima canibal? Pelas
contas que fiz Cunhambebe vem a ser bisavô do meu avô?
Para meu deleite, em vez de horrorizar-se, Carlota Joaquina deu uma
risada que seria mais sonora não fosse o efeito desastroso da
dentadura.
- Uma nobre ascendência. Pois saiba que até na Corte da Espanha
conhecem-se histórias de seu avô. Li sobre Hans Staden, o alemão
que foi tomado por português e ficou que foi prisioneiro dele
durante ......E aqui no Brasil soube de versões bem mais vergonhosas
do que a que esse sobrevivente contou.
Entrei a imaginar o que teria causado espécie à princesa regente.
Seriam as catorze mulheres de Cunhambebe, chocantes até para
quem era difamada como promíscua? Não, definitivamente,
questões de poligamia não iriam melindrar a degredada nos
Trópicos.
- Alguns nobres brasileiros, que se interessam por histórias de
canibais, dizem que Hans Staden só se salvou porque borrou-se
inteiro no momento da cerimônia de sua morte. Cunhambebe então
ordenou que não o executassem, “pois não comia covardes”.
- Ah, então foi esse destempero de covardia que salvou Hans Staden,
como por um milagre a escorrer de suas pernas bambas?
- Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay. Se Cunhambebe
nutria-se do inimigo para absorver suas qualidades e valentias, não
poderia querer assenhorear-se da covardia do alheio - retrucou a
princesa, com muito espírito.
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40. - Deve ser por ter-lhe salvo a vida que Hans Staden o endeusa em
seu relato, trata-o como um grande guerreiro e naturalmente, não faz
menção a seu providencial desarranjo - observei.
Dona Carlota riu. Achei-a menos feia.
- Afinal, os homens são todos iguais, cantam a canção de quem lhes
dá o pão.
A Viagem de Hans Staden, que conta sua estada no litoral sul de São
Paulo de 1550 a 1554, eu já conhecia, não me trouxe novidades, a
não ser a memória de um encontro entre o marujo alemão e o
Cacique dos Caciques, Cunhambebe, de quem ele agora era
prisioneiro. Havia anos Hans Staden ouvia falar nos sucessivos
triunfos de Cunhambebe e no medo e no ódio que despertava nos
portugueses. Estava trabalhando como soldado do português Mem
de Sá, o maior flagelo dos tamoios, quando foi aprisionado na
tomada de um forte, que infligiu mais uma derrota na guerra dos
índios contra o flagelo portugues.
O viajante alemão que passou o resto da vida ganhando dinheiro
com a narrativa de seus quatro anos de dissabores e prisão entre os
índios tupinambás conta que em momentos de guerra os rituais dos
índios eram mais rápidos, sendo os portugueses devorados aos
montes e o restante de sua carne moqueada fornecia o farnel para as
expedições de caça nos dias seguintes. Hans Staden foi inicialmente
tomado por mentiroso ao dizer que não era português, mas que havia
sido aprisionado pelos portugueses e obrigado a atacar os tamoios.
Ele chegou a ser chamado de português covarde, pois muitos
mentiam, dizendo que eram na verdade prisioneiros franceses,
aliados dos tamoios.
Mas Hans Staden conta que não disse que era francês e sim alemão,
uma tribo européia aliada dos franceses, segundo ele. A duvida se
ele era realmente português adiou diversas vezes sua morte, mas não
40
41. conseguiu aplacar a sentença e acabou tendo de enfrentar o ritual da
morte. Na noite em que seria comido, no meio dos ritos e momentos
antes de ser morto com um bordunada, Hans Staden recebeu
misteriosamente um grito de Cunhambebe, que lhe concedeu o
perdão E depois dizem que o Cacique continuou protegendo Hans
Staden até facilitou a volta para os seus, ao trocá-lo por
quinquilharias com um navio mercante francês.
O trecho que mais me interssou foi o da narrativa do primeiro
encontro entre Hans Staden e o Cacique Cunhambebe:
“- Você é Cunhambebe? Ainda está vivo? – perguntou Hans Staden.
- Sim, ainda estou vivo – respondeu o Cacique tupinambá.
- Já ouvi falar de vosmecê, vosmecê é um homem cheio de virtudes.
Cunhambebe ficou orgulhoso. Tinha uma grande pedra verde metida
no lábio e no pescoço um colar de conchas brancas
Continuamos a prosa. Mandei servir o almoço. Os convidados e a
Corte se atiraram a um bufê coberto de iguarias, onde tivera o
cuidado de misturar delícias muito apreciadas na terra a outras que
costumava fazer na França. Foi assim então que crepes delicadas,
feitas de farinha, ovos e leite, na melhor tradição francesa,
embebiam-se de recheios tipicamente brasileiros, doces como
compotas de manga, coco ou goiaba, ou salgados como a carne-de-
sol desfiada, alternando-se a presuntos defumados, lombos
cuidadosamente assados, um delírio para os olhos. Chamava atenção
um cuscuz de camarão, uma massa de farinha de milho com tomate,
enfeitada por vários crustáceos. Os portugueses que conheciam o
cuscuz em sua versão moura o substituíram nas novas terras por
esses ingredientes, eu provara e aprovara a receita. Para servir esse
bolo salgado dos tuaregues utilizei uma vasilha de prata coberta por
folhas de bananeira.
Usei metades de ananás escavados e deitados à mesa à guisa de
recipientes para camarões grandes e fritos, um lindo contraste da
casca vermelha com a crosta dourada, na qual tive o cuidado de
41
42. conservar a verde coroa. Peixes havia-nos em grande quantidade,
alguns assados inteiros, a moda indígena, e outros preparados com
delicados molhos franceses. Assim também fiz com os leitões, além
dos inteiros preparei lombos cozidos no suco das laranjas, o que foi
grandemente apreciado. Cozinhei carnes em vinhos tintos
portugueses, uma adaptação do bourgnon francês, pois recusei-me a
usar as garrafas de borgone de fina safra que trouxera, preferindo
servi-los em taça.
Como sobremesa, ao lado da mais fina pâtisserie, bolos rústicos de
aipim e cenoura, creme caramel, cocadas de várias cores. Para
aproveitar as dezenas de claras postas ao lado na confecção dos
quindins, que seguindo a tradição portuguesa levavam apenas as
gemas, as escravas fizeram suspiros finíssimos. Compotas de várias
frutas como laranja e limão, minhas favoritas, enfeitavam jarras de
cristal claríssimos com as cores vivas da manga, do figo, da
jabuticaba, do caju e do mamão. Cheiroso café acompanhado de
petit fours amanteigados, biscoitinhos e licores diversos encerrou o
repasto.
Ainda trocando impressões sobre a riqueza do almoço, lamentando
que mais não lhes permitia a natureza comer, os interessados
dirigiram-se ao leilão. No calor do entusiasmo gerado pelo banquete,
em menos de duas horas, tudo foi arrematado: estátuas, estatuetas,
porcelanas, tapeçarias, quadros sem muito valor que portara, pois
antes de deixar a França tomara a providência de doá-los para o
Louvre. Outra providência que adotei foi trazer no navio algumas
garrafas de champanhe. Abri uma para comemorar o sucesso do
martelo e fui oferecer um brinde à regente. As borbulhas acenderam
ainda mais nossa mútua simpatia. Despedimo-nos, dona Carlota e
eu, com promessas mútuas de revermo-nos em breve, o que nunca
mais aconteceu.
Depois de ter contado o dinheiro apurado e colocado em um cofre
seguro, dormi aquele sono pesado causado pela refeição farta regada
42
43. a boa bebida. Acordei na madrugada aborrecida, pois era pouco
afeita a tardes de siesta, que me causavam longas horas de insônia.
Levantei-me só, a Corte se fora e a casa parecia maior e mais vazia,
ainda que impecavelmente arrumada, Odette e as escravas eram
impecáveis, ninguém diria que por ali houve animada festa. Despi-
me, pois ainda portava o vestido branco e, nua, assentei-me na
poltrona a ver pela janela a lua cheia no jardim. Acompanhei um
raio de luar que traçava um facho de luz no quarto. No final dele, em
cima de um aparador, havia um esqueleto de piranha seco ao sol por
Iracema, a lamentar-se a morte de um de seus peixinhos de
estimação.
Prateada pelo luar, a mandíbula de piranha parecia
fosforescente meio à escuridão do quarto. Imaginei que teria sido
uma das que devorou o gentil Gizeh e meu coração doeu-se.
Imaginei o horror dos últimos momentos do pequeno e desavisado
ser e lembrei-me de Hans Staden, a borrar-se de medo perante a
borduna que o levaria ao moquém. Decididamente eu também não
gostaria de ser vítima, preferia o papel de meu antepassado,
Cunhambebe, assim como meu eterno mentor, Sade, o de eterna
senhora. Não sabia que Cunhambebe era natural ou cruel. Reflexão
sobre canibalismo, crueldade, como queria Sade, ou natural, como
queria Cunha. O próprio Napoleão Bonaparte, a quem concedi meus
favores ainda quando ele tinha 25 anos na prisão, levado pela morte
de Robespierre, antes de tornar-se o rei do mundo, costumava dizer
“prefiro devorar a ser devorado”.
Levantei-me e tomei em minhas mãos os ossos da piranha. Eu
acabara de descobri que a forma também poderia ser usada para
transferir poderes. Coloquei um roupão e fui em busca de alguns
utensílios. Novamente sob a luz da lua, reduzi a pó alguns dentes do
esqueleto com uma lixa de pirarucu. Dissolvi-o em aguardente
límpido e deixei sob a luz da lua. Novamente lembrei-me de Gizeh e
o apelido maldoso, dado pela conformação da enorme cabeça, a
lembrar a esfinge do deserto, imediatamente acudiu-me o enigma
que aterrorizou Édipo Rei, decifra-me ou devoro-te. Tomei do copo
43
44. e tomei fartos goles. Não sei se pelos poderes do Elixir da Piranha
ou se pelo amortecimento da cachaça, dormi profundamente.
44